Portugal e a adopção de um limiar explícito de custo-efectividade: qual caminho seguir?
A Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (INFARMED) desempenha um papel central na avaliação das tecnologias de saúde em Portugal, analisando o benefício clínico, o impacto orçamental e o valor económico das tecnologias de saúde ao decidir quais devem ser comparticipadas pelo Serviço Nacional de Saúde português. Numa altura em que o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) em Inglaterra se debate com um possível aumento do limiar de custo-efetividade (CET), este será o momento ideal para reflectir se o INFARMED deveria estabelecer explicitamente um CET. As orientações metodológicas do INFARMED para Estudos de Avaliação Económica de Tecnologias de Saúde (Perelman et al. 2019) exigem avaliações económicas e análises de impacto orçamental para fundamentar as decisões de preço e comparticipação. No entanto, Portugal, como muitos outros países, não possui um CET explícito como regra formal de decisão sobre o value for money de tecnologias de saúde. As orientações metodológicas farmacoeconómicas do INFARMED destacam uma avaliação estruturada, mas não estabelecem uma “linha vermelha” numérica, seja ela pontual ou em forma de intervalo, reflexo tanto da incerteza metodológica como de uma opção política deliberada.
Os argumentos a favor de um CET explícito são claros. Um CET transparente transforma os resultados de custo-efectividade (o rácio de custo-efectividade incremental, ICER) num sinal objectivo sobre se uma tecnologia de saúde representa value for money para o sistema, simplifica comparações entre diferentes tecnologias e reduz a arbitrariedade nas decisões em saúde. Países com CET explícitos, ou intervalos de referência, como o NICE (20.000–30.000 libras por QALY adicional), utilizam-nos para negociar preços, definir expectativas para a indústria farmacêutica e apoiar o debate público sobre a melhor alocação de recursos de saúde, com o objetivo major de maximizar resultados em saúde da população. Um CET explícito ajuda a traduzir as avaliações económicas de tecnologias de saúde em política operacional, tornando visíveis tanto os compromissos estabelecidos, como as prioridades do sistema.
Contudo, os CETs também têm desvantagens. Um único CET pode gerar rigidez, com diferentes áreas clínicas, doenças raras ou tecnologias com grande impacto orçamental podendo justificar excepções. Um valor fixo pode distorcer incentivos, encorajando as empresas a definir preços junto ao tecto permitido e potencialmente ignorar preocupações distributivas, como a equidade, a severidade da doença ou unmet need. Estudos empíricos (Claxton et al. 2015) alertam que limiares definidos sem uma base normativa apropriada podem reduzir os ganhos totais em saúde caso não reflitam o verdadeiro custo-oportunidade do sistema. Muitos países evitam estabelecer um CET explícito por considerações políticas e éticas, alegando a exigência de julgamentos caso a caso.
Para o INFARMED, a escolha poderá passar por um sinal de transparência ética e metodológica, e de flexibilidade. Um CET explícito reforçaria a previsibilidade e o poder negocial nas negociações de preço e comparticipação, além de facilitar a comunicação com todos os stakeholders, sejam profissionais de saúde, doentes ou decisores. Poderia ser aplicado como um intervalo de valores, com mecanismos formais para ajustar o intervalo consoante a raridade da doença (como o programa de Highly Specialised Treatments no NICE), ou impacto orçamental. Experiências internacionais demonstram que um sistema com CET em intervalo e com possível ajustamento de regras de decisão (por exemplo, considerando ponderações superiores para doenças severas – como o cálculo do QALY shortfall no NICE) é operacionalmente viável, desde que baseados em clara base normativa e na definição de regras explícitas de ajustamento. Quaisquer que sejam as regras, deverão ser complementadas por uma deliberação estruturada, envolvendo todos os stakeholders, incluindo profissionais de saúde, academicos, representantes de doentes e da indústria; para que valores não quantitativos — como a equidade e o incentivo à inovação — sejam também considerados.
Mesmo assim, é necessária prudência antes de adoptar um número fixo ou um intervalo de valores sem validação metodológica. A prática internacional mostra grande variação nos CETs aplicados, com muitos países não tendo um CET oficial, e as regras baseadas no PIB (como o proposto pela WHO), embora muitas vezes mal interpretadas, são amplamente criticadas por serem arbitrárias e pouco ligadas ao real custo-oportunidade. Importar um CET de outro país, como de Inglaterra para Portugal, por exemplo, pode não refletir o que o SNS efectivamente abdica ao financiar uma nova tecnologia de saúde, dado que o sistema de saúde português, o seu padrão de despesas e a produtividade marginal dos cuidados de saúde providenciados à população diferirem substancialmente do contexto britânico. Uma alternativa para médio-longo prazo seria uma estimativa empírica dinâmica do CET, considerando periodicamente quanto gasta o SNS, mas também quanto produz em termos de saúde. Gastos em saúde, sua variação longitudinal, e correspondentes mudanças em resultados de saúde ao longo do tempo, seriam dados chave para permitirem um cálculo empírico robusto do custo marginal por QALY ganho e a sua revisão periódica.
Em conclusão, a adopção de um CET explícito pelo INFARMED pode trazer maior transparência e previsibilidade ao processo de decisão sobre a comparticipação de tecnologias de saúde em Portugal. A implementação de um CET explícito deve ser baseada numa sólida fundamentação metodológica e empírica, garantindo que reflicta o verdadeiro custo-oportunidade do sistema de saúde. O desafio está lançado.
Pedro Saramago
Research Scientist, Evidera PPD Thermo Fisher Scientific
Honorary Fellow, University of York
Este artigo expressa exclusivamente a opinião do autor, não representando necessariamente a visão da APES, Evidera, PPD part of THermo Fisher Scientific ou University of York
- Perelman J, Soares M, Mateus C, Duarte A, Faria R, Ferreira L, Saramago P, Veiga P, Furtado C, Caldeira S, Teixeira MC, Sculpher M (2019). Orientações Metodológicas para Estudos de Avaliação Económica. INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., Lisboa.
- Claxton, K., Martin, S., Soares, M., Rice, N., Spackman, E., Hinde, S., Devlin, N., Smith, P.C., & Sculpher, M. (2015).Methods for the estimation of the National Institute for Health and Care Excellence cost-effectiveness threshold. Health Technology Assessment, 19(14), 1-503. doi:10.3310/hta19140







