Regulação do mercado farmacêutico: os desafios da concorrência multimercado
A despesa com medicamentos é um dos temas que mais atenção merece no debate sobre a sustentabilidade dos sistemas de saúde. Em Portugal, após um período de forte contenção da despesa com medicamentos vendidos em ambulatório, durante o Programa de Assistência Económica e Financeira (2011-2014) [1], observou-se, nos últimos anos, uma tendência de crescimento dos encargos públicos e privados neste segmento [2]. É neste contexto que ganha particular importância uma discussão aprofundada sobre a forma como a concorrência entre empresas farmacêuticas se processa.
Durante o período de proteção de patente, medicamentos inovadores encontram-se protegidos de concorrência direta, o que confere às empresas farmacêuticas a oportunidade de cobrar preços mais altos do que aqueles que seriam praticados em situações concorrenciais. O racional é que o período de patente permite às empresas recuperar os investimentos feitos em Investigação e Desenvolvimento. Assim, um dos fenómenos com maior potencial de gerar poupanças para os sistemas de saúde é a perda de patente de medicamentos e a subsequente entrada de genéricos.
Porém, mesmo após a entrada de genéricos no mercado, em muitos países (incluindo Portugal) há intervenção por parte de entidades reguladoras, no sentido de promover a concorrência entre empresas. Esta intervenção justifica-se pelas especificidades do mercado farmacêutico. Em particular, o facto de os doentes pagarem apenas parte do preço total dos medicamentos comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), torna os consumidores menos sensíveis ao preço praticado pelas empresas o que – tudo o resto constante – incentiva as empresas a cobrar preços mais elevados do que aqueles que lhes seria possível praticar se os consumidores suportassem a totalidade do preço dos medicamentos.
Por conseguinte, mesmo em mercados em que já existem genéricos disponíveis, Portugal (à semelhança de outros países) implementa mecanismos de regulação com o intuito de controlar as despesas com medicamentos. Os mecanismos implementados abrangem não só o lado da oferta – como por exemplo por via da definição de preços máximos que as empresas farmacêuticas podem cobrar pelos medicamentos comparticipados pelo SNS -, mas também do lado da procura, nomeadamente através da definição de um nível de comparticipação único para medicamentos semelhantes, o que incentiva os consumidores a optar pelo medicamento de preço mais baixo.
A teoria económica e a evidência empírica para o mercado farmacêutico revelam que, por norma, num dado mercado, um aumento no número de empresas concorrentes tende a traduzir-se em preços mais baixos. Porém, a maioria dos estudos abstrai-se do facto de que as empresas farmacêuticas são empresas que atuam simultaneamente em diversos mercados (leia-se não apenas mercados geográficos, mas também, para um dado mercado geográfico, as empresas fornecem medicamentos de diversas substâncias químicas, sendo que cada substância química pode ser vista como um mercado distinto).
Num artigo recente, desenvolvido em conjunto com Eduardo Costa e Sara Machado, avaliámos de que modo esta presença multimercado afeta a concorrência [3]. De facto, de acordo com a teoria da “tolerância mútua”, formalizada num trabalho seminal de Bernheim e Whinston [4], empresas que se encontrem simultaneamente em vários mercados tenderão a abster-se de iniciar práticas concorrenciais agressivas num dado mercado, a fim de evitar retaliação das empresas rivais, não apenas nesse mercado, mas em todos os mercados em que se encontram.
O que mostrámos, através de uma análise dos preços praticados por todas as empresas produtoras de estatinas (medicamentos utilizados para reduzir o colesterol LDL) vendidas em Portugal, entre 2015 e 2017, e incluídas no Sistema de Preços de Referência, é que empresas que se encontram em mais mercados tendem a cobrar preços mais próximos dos preços máximos permitidos, do que empresas que encontram rivais em menos mercados.
A relevância deste resultado é dupla. Por um lado, demonstra que a entrada de novos concorrentes não garante, por si só, uma concorrência mais intensa, quando estas empresas se encontram repetidamente noutros mercados. Por outro, alerta para o risco de os preços máximos definidos, concebidos para limitar práticas abusivas, poderem funcionar como âncoras de coordenação tácita entre empresas.
Do ponto de vista de política pública, isto significa que, para além do regime de preços máximos, poderá ser necessário implementar instrumentos que considerem a dimensão multimercado das empresas. Monitorizar padrões de preços muito próximos dos preços máximos permitidos, introduzir mecanismos de ajustamento dinâmico dos preços máximos ou calibrar os preços máximos permitidos em função da diversidade de portfólios das empresas são exemplos de medidas com potencial de reforçar a concorrência.
Em suma, se a regulação pretende assegurar poupanças reais para o SNS e para os utentes, deve reconhecer que na indústria farmacêutica a concorrência se joga em múltiplas frentes, e que a presença repetida das mesmas empresas em diferentes mercados influencia o nível de preços praticados.
Carolina Santos
Investigadora
Nova Health Economics & Management Knowledge Center
Nova School of Business and Economics
Referências
[1] Barros, P. P., Lourenço, A., Moura, A., Correia, F., Silvério, F., Gomes, J. P., … & Cipriano, R. (2015). Políticas Públicas em Saúde: 2011–2014: Avaliação do Impacto. Portugal: Universidade de Nova Lisboa.
[2] Infarmed. (Dezembro 2024). Monitorização da despesa com medicamentos: Ambulatório. https://www.infarmed.pt/documents/15786/10121937/dezembro/2c379500-5cd7-6145-ef13-a9726504308c?version=1.0
[3] Santos, C., Costa, E., & Machado, S. (2025). The Impact of Multimarket Competition on Generic Drugs’ Regulated Prices. Health Economics. doi: https://doi.org/10.1002/hec.70029
[4] Bernheim, B. D., & Whinston, M. D. (1990). Multimarket contact and collusive behavior. The RAND Journal of Economics, 1-26. doi: https://doi.org/10.2307/2555490