O novo modelo de financiamento das ULS: ainda há caminho por percorrer?
Um dos elementos centrais da recente reforma do Serviço Nacional de Saúde foi a organização do país em 39 Unidades Locais de Saúde, que integram cuidados de saúde primários e hospitalares. Em paralelo, foi também implementado um novo modelo de financiamento. Os modelos de financiamento das instituições são engrenagens pouco visíveis mas absolutamente centrais pelos incentivos que implicam. De facto, são responsáveis pelo equilíbrio de duas dimensões frequentemente em tensão: a eficiência versus a qualidade dos cuidados prestados.
O novo modelo de financiamento deixa de ser baseado na produção (anteriormente os hospitais eram remunerados pelo número de consultas, episódios de urgência, doentes internados,…) e aproxima-se de um modelo por capitação. Atualmente, as ULS são financiadas através de um valor pago por residente na sua área geográfica, ajustado ao risco dessa população (esta capitação representa mais de 80% do financiamento das ULS em 2025). Uma vez que este valor é pago de forma independente do volume de cuidados prestados, existe um incentivo a manter os residentes saudáveis. Contudo, para evitar incentivos perversos, é fundamental um ajustamento ao risco adequado e a existência de indicadores de qualidade.
A novidade e radicalidade deste modelo, ainda que alinhando incentivos na direção certa, implica forçosamente um período de adaptação. Acredito que neste momento sentimos precisamente algumas “dores de crescimento” associadas à implementação de um modelo que não se encontra ainda totalmente estabilizado. Destaco duas dimensões que acredito possam merecer uma discussão mais aprofundada.
Em primeiro lugar, a fundamentação de algumas opções metodológicas para a estratificação de risco não é ainda totalmente clara. Para determinar a capitação de cada ULS é estimado um Índice de Risco Ajustado (IDRA). De acordo com os termos de referência para a contratualização de cuidados de saúde, este IDRA é estimado com base no “risco da população inscrita com médico de família” e tem em consideração informação relativa “à produção, morbilidade e custos (…)”. A inclusão de indicadores de produção no cálculo do risco parece contrária ao princípio de desligar o modelo de financiamento da atividade das ULS, centrando-o na carga de doença da população. Da mesma forma, a não inclusão de dados relativos a utentes sem médico de família pode enviesar as estimativas de risco em determinadas ULS. Talvez estes elementos expliquem, em parte, algumas variações abruptas do IDRA entre 2024 e 2025 (o que considero inesperado, uma vez que o risco de uma população não deveria variar substancialmente entre anos). Por exemplo, no caso da ULS Amadora-Sintra, este risco aumentou 20% em apenas um ano.
Em segundo lugar, creio que o financiamento para doentes mais complexos merece uma atenção particular. Estes doentes, cujos tratamentos muito diferenciados são também mais caros, são muitas vezes tratados em ULS distintas das da sua área geográfica (por exemplo, sendo referenciados para Centros de Referência). O modelo anterior previa um (pequeno) incentivo à produção destes centros através da majoração da sua atividade. Contudo, o modelo atual não prevê esse incentivo, garantindo que o financiamento destes doentes é feito através de fluxos in-and-out. Ou seja, num pagamento feito pela ULS que referencia à ULS que recebe o doente. Não é, neste momento, clara a forma como estes fluxos são calculados e a adequabilidade dos valores considerados face aos custos reais destes doentes (a ausência de contabilidade analítica é aqui particularmente relevante). Se não estiverem devidamente calibrados, estes fluxos in-and-out podem gerar incentivos perversos para que doentes não sejam referenciados (pelas ULS de origem) ou que as ULS de destino não os queiram receber. É por isso importante considerar a possibilidade de reforçar a dimensão mista do modelo de financiamento, ao mesmo tempo que se introduzem mecanismos para garantir que as redes de referenciação são efetivamente cumpridas. Tal é fundamental para garantirmos os melhores cuidados possíveis para estes doentes, ao mesmo tempo que se garante a eficiência dos recursos existentes.
Os incentivos que um modelo de financiamento pretende gerar dependem da sua credibilidade, que por sua vez é função da transparência e clareza da metodologia utilizada. Neste momento, apesar de todo o percurso já realizado, existe ainda espaço para que o modelo evolua de modo a melhorar a qualidade dos cuidados prestados pelo SNS, garantindo a sua eficiência e sustentabilidade.
Eduardo Costa
Professor e Investigador em Economia da Saúde no Instituto Superior Técnico – Universidade de Lisboa