O duplo desafio dos economistas da saúde: avaliar o impacto e a aceitação da IA nos sistemas de saúde
O papel transformador da Inteligência Artificial (AI) é destacado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no relatório “Ethics and governance of artificial intelligence for health: WHO guidance” [1], perspetiva que encontra eco noutros autores [2, 3]. Entre os benefícios estão a melhoria da experiência de doentes e profissionais, maior eficiência e cuidados personalizados [4, 5], além do potencial alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no setor da saúde [6].
No entanto, a par do reconhecimento do potencial da IA na melhoria dos cuidados e concretização da cobertura universal, a OMS enfatiza a necessidade de colocar questões éticas e direitos humanos no centro da conceção, desenvolvimento e implementação destas soluções [1]. Esta preocupação é partilhada por outros autores, que sublinham a necessidade de prudência na adoção destas tecnologias emergentes. A rápida expansão das inovações em IA na saúde requer um enquadramento que integre políticas de saúde e inovação [7], levando as autoridades a criar regulações e métodos de avaliação que abordem adequadamente a sua complexidade [8]. Que papel pode, então, desempenhar a economia da saúde neste cenário?
Na minha perspetiva, o potencial da economia da saúde estende-se por vários domínios: a promoção da equidade no acesso, a sustentabilidade dos sistemas, o desenho de incentivos para inovação e a análise da eficiência de novos modelos organizacionais. Contudo, pretendo focar-me em duas áreas onde o nosso contributo será importante: a avaliação do impacto económico e social das tecnologias baseadas em IA e a compreensão da sua aceitação pelos utilizadores. Sem esta análise, arriscamo-nos a investir em inovação sem sustentação, acumular tecnologia sem valor efetivo ou implementar mudanças que enfrentarão resistência ativa dos intervenientes.
Na avaliação do impacto, metodologias como a avaliação económica, Value-Based HealthCare e Value for Money permitem analisar custos e consequências, assegurando a utilização racional dos recursos. O Social Return on Investment [9] surge também como uma ferramenta promissora, embora seja mais utilizada por consultoras que referenciada na literatura académica. Porém, a análise da IA enfrenta desafios específicos: as avaliações existentes apresentam défices metodológicos [10] e as utilizações clínicas da IA desafiam métodos convencionais de avaliação [11]. Neste contexto foram publicadas em 2023 recomendações para superar os obstáculos à utilização de evidência impulsionada pela IA na avaliação das tecnologias da saúde [12].
Na vertente da aceitação, a UTAUT (Unified Theory of Acceptance and Use of Technology) destaca-se pela capacidade de explicar tanto aspetos tecnológicos como fatores sociais [13], sendo considerada fundamental para estudar a adoção de ferramentas de IA [14] tendo em conta diversas aplicações na saúde [15-17]. Outro instrumento recente é a TrAAIT (Theory of trust and acceptance of artificial intelligence technology) [18]. Contudo, apesar do potencial destas ferramentas, persistem desafios de adoção, relacionados com a tradução, adaptação e validação cultural para o contexto português.
Os desafios da IA nestas duas vertentes revelam-se estimulantes para a economia da saúde. Atualmente, como investigador nesta área, trabalho com colegas da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra no projeto “Safecaring – Enhancing care safety and quality through reduced administrative burden“. Esta solução baseada em IA visa auxiliar profissionais de saúde no cuidado de utentes dependentes, oferecendo suporte personalizado e assegurando tempos adequados para cada intervenção. O projeto tem dois objetivos principais: reduzir significativamente o tempo que os profissionais dedicam aos registos administrativos e diminuir a ocorrência de eventos adversos (quedas, lesões de pressão, desidratação), privilegiando as relações humanas e a interação entre profissional, utente e família. A nossa equipa, ao analisar o impacto e a aceitação desta tecnologia, já identificou na prática alguns dos desafios metodológicos anteriormente descritos e procura formas de os ultrapassar.
Como investigadores, a nossa responsabilidade vai além de acompanhar esta revolução tecnológica, devendo questioná-la com rigor científico. Não podemos permitir que o fascínio pela inovação ofusque a necessidade de evidência robusta sobre o seu impacto real. Considero preocupante observar algum entusiasmo excessivo que frequentemente não é acompanhado pelo necessário escrutínio económico e social. Na minha opinião, o sucesso da IA na saúde não será determinado pela sofisticação dos algoritmos, mas pela sabedoria com que avaliarmos o que verdadeiramente importa: o valor gerado para os utentes, para os profissionais e para a sustentabilidade do sistema de saúde como um todo.
1Mais informação em
https://www.uc.pt/spgi/dpa/projetos-cof-ue/safecaring-enhancing-care-safety-and-quality-through-reduced-administrative-burden/.
Victor Raposo (Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra)
Referencias:
[1] WHO. Ethics and governance of artificial intelligence for health: WHO guidance. Geneva: World Health Organization, 2021.
[2] Bajwa J, Munir U, Nori A, Williams B. Artificial intelligence in healthcare: transforming the practice of medicine. Future Healthc J 2021; 8:e188-e94.
[3] Bohr A, Memarzadeh K. The rise of artificial intelligence in healthcare applications. Artificial Intelligence in Healthcare, 2020.
[4] Alowais SA, Alghamdi SS, Alsuhebany N, Alqahtani T, Alshaya AI, Almohareb SN, Aldairem A, Alrashed M, Bin Saleh K, Badreldin HA, Al Yami MS, Al Harbi S, Albekairy AM. Revolutionizing healthcare: the role of artificial intelligence in clinical practice. BMC Medical Education 2023; 23:689.
[5] Spatharou A, Hieronimus S, Jenkins J. Transforming healthcare with AI: The impact on the workforce and organizations. McKinsey & Company 2020; 10.
[6] Montes R, Melero F, Palomares I, Alonso S, Chiachío J, Chiachío M, Molina D, Martínez-Cámara E, Tabik S, Herrera F. Inteligencia Artificial y tecnologías digitales para los ODS. Spain’s Royal Academy of Engineering: Madrid, Spain 2021.
[7] Pacifico Silva H, Lehoux P, Miller FA, Denis J-L. Introducing responsible innovation in health: a policy-oriented framework. Health Research Policy and Systems 2018; 16:90.
[8] Bélisle-Pipon JC, Couture V, Roy MC, Ganache I, Goetghebeur M, Cohen IG. What Makes Artificial Intelligence Exceptional in Health Technology Assessment? Front Artif Intell 2021; 4:736697.
[9] Hutchinson CL, Berndt A, Forsythe D, Gilbert-Hunt S, George S, Ratcliffe J. Valuing the impact of health and social care programs using social return on investment analysis: how have academics advanced the methodology? A systematic review. Bmj Open 2019; 9:e029789.
[10] Wolff J, Pauling J, Keck A, Baumbach J. The economic impact of artificial intelligence in health care: systematic review. Journal of medical Internet research 2020; 22:e16866.
[11] Hendrix N, Veenstra DL, Cheng M, Anderson NC, Verguet S. Assessing the Economic Value of Clinical Artificial Intelligence: Challenges and Opportunities. Value Health 2022; 25:331-9.
[12] Zemplényi A, Tachkov K, Balkanyi L, Németh B, Petykó ZI, Petrova G, Czech M, Dawoud D, Goettsch W, Gutierrez Ibarluzea I, Hren R, Knies S, Lorenzovici L, Maravic Z, Piniazhko O, Savova A, Manova M, Tesar T, Zerovnik S, Kaló Z. Recommendations to overcome barriers to the use of artificial intelligence-driven evidence in health technology assessment. Front Public Health 2023; 11:1088121.
[13] Naranjo-Zolotov M, Oliveira T, Casteleyn S. Citizens’ intention to use and recommend e-participation. Information Technology & People 2019; 32:364-86.
[14] Venkatesh V. Adoption and use of AI tools: a research agenda grounded in UTAUT. Annals of Operations Research 2022; 308:641-52.
[15] Abdelhalim H, Berber A, Lodi M, Jain R, Nair A, Pappu A, Patel K, Venkat V, Venkatesan C, Wable R, Dinatale M, Fu A, Iyer V, Kalove I, Kleyman M, Koutsoutis J, Menna D, Paliwal M, Patel N, Patel T, Rafique Z, Samadi R, Varadhan R, Bolla S, Vadapalli S, Ahmed Z. Artificial Intelligence, Healthcare, Clinical Genomics, and Pharmacogenomics Approaches in Precision Medicine. Frontiers in Genetics 2022; 13.
[16] Kim YJ, Choi JH, Fotso GMN. Medical professionals’ adoption of AI-based medical devices: UTAUT model with trust mediation. Journal of Open Innovation: Technology, Market, and Complexity 2024; 10:100220.
[17] Kwak Y, Seo YH, Ahn J-W. Nursing students’ intent to use AI-based healthcare technology: Path analysis using the unified theory of acceptance and use of technology. Nurs Educ Today 2022; 119:105541.
[18] Stevens AF, Stetson P. Theory of trust and acceptance of artificial intelligence technology (TrAAIT): An instrument to assess clinician trust and acceptance of artificial intelligence. Journal of Biomedical Informatics 2023; 148:104550.