Creio em Ciência
Um dia destes eu estava a discutir com um amigo meu sobre a 4ª palava preferida de Deus: Tarifas. Eu explicava-lhe, com exemplos de milho americano e frutos vermelhos europeus, porque é que a economia diz que relações comerciais mais abertas são melhores. Expliquei-lhe que impor tarifas em mercados estratégicos pode parecer apetecível, mas a possibilidade de retaliação torna essa ideia menos atrativa. Para minha surpresa, ele disse que isso é apenas uma narrativa criada e difundida pelos media e cientistas, e que não confia na Ciência porque esta nunca dá certezas de nada. Exemplificou que a Ciência já disse, em certo período, que o tabaco era bom para a saúde, o que veio a comprovar-se mais tarde não ser verdade. Disse também que já houve vacinas e medicamentos que vieram a ser reconhecidos como inseguros depois da sua introdução no mercado.
Ele não confia na Ciência, mas confia na Ciência para explicar que não confia na Ciência. Não confio…
Mas confianças à parte, este é um problema que não se manifesta apenas no meu círculo de amigos. Hoje, temos inúmeros negacionistas do(a) covid, da vacinação e da Ciência em geral.
É verdade que a Ciência vai estando incerta em várias ocasiões. É verdade sim, que ao longo da história, vários produtos farmacêuticos já foram retirados do mercado por motivos de segurança1,2. Também já aconteceu usarem a Ciência como instrumento para corrupção3–5. Mas ainda assim, qual é a alternativa? É colocar no mercado apenas produtos em que a certeza de segurança e eficácia seja absoluta (nenhum)? Ou colocar apenas produtos aprovados diretamente por um Deus político qualquer?
Enquanto para a Ciência o convívio com a incerteza é tão natural como pensar, para o público isso não é verdade. Se para a Ciência é normal que um medicamento que funcione 70% das vezes, não resulte para 30 de cada 100 pessoas, para o público essas 30 pessoas são a prova viva (ou morta…) de que o medicamento não funciona.
As pessoas não gostam de probabilidades (nem as entendem), e acima de tudo, odeiam pensar num espaço continuo. Como é que se explica a alguém que foi ensinado desde criança a dizer com orgulho que não nasceu para a matemática, que entre 0 e 1 existe uma infinidade de números? As pessoas gostam de raciocinar em espaços discretos, em que, ou é 0 ou é 1, ou é sim ou é não, ou é mentira ou é verdade6,7.
Quando aparece alguém que confronta a chata, burocrática, cinzenta e elitista elite científica, e nos oferece um nítido mundo assingelado por escolhas discretas, é naturalmente tentador fazer desse alguém um Deus, e rezar para que a cloroquina de cada dia nos dê hoje e nos livre da incerteza, ámen.
Se a Ciência disser que tem a certeza de algo, ela própria, enquanto organismo vivo e indomável, se irá contrariar a si mesma, reduzindo irreparavelmente a sua já ténue credibilidade. Mas se disser que não tem certeza de nada, então porque se deve acreditar nela? Os Deuses da verdade têm uma vantagem divina, uma vez que têm certezas que não podem ser desmentidas pela Ciência, porque uma das certezas que têm é que a Ciência, ao contrário deles, não tem certeza de nada.
Mas se a Ciência está morta e só sobrou a religião, então venha a conversão. Não num espaço discreto, mas contínuo, movendo cada pessoa um pouquinho mais para o conhecimento. Não num espaço certo, mas incerto, em que a dúvida alimenta a descoberta. Não com pão nem vinho, mas com lógica e pensamento critico. Não oferecendo a certeza de um céu, mas abraçando as incertezas da terra.
Luis Filipe (Lancaster University)
Referencias
1 CDC. Historical Vaccine Concerns. Vaccine Saf. 2024; published online Aug 5. https://www.cdc.gov/vaccine-safety/historical-concerns/index.html (accessed March 4, 2025).
2 Wikipedia. List of withdrawn drugs. Wikipedia. 2025; published online Feb 6. https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=List_of_withdrawn_drugs&oldid=1274252607 (accessed March 4, 2025).
3 Boseley S, editor health. Lancet retracts ‘utterly false’ MMR paper. The Guardian. 2010; published online Feb 2. https://www.theguardian.com/society/2010/feb/02/lancet-retracts-mmr-paper (accessed March 4, 2025).
4 Harvard Law Review. Harrington v. Purdue Pharma L.P. Harv. Law Rev. 2024; published online Nov 10. https://harvardlawreview.org/print/vol-138/harrington-v-purdue-pharma-l-p/ (accessed March 4, 2025).
5 Offit PA. Vaccines and Autism Revisited — The Hannah Poling Case. N Engl J Med 2008; 358: 2089–91.
6 Coase, the Rules of the Game, and the Costs of Perfection (with Daisy Christodoulou) 2/3/25. 2025 https://www.youtube.com/watch?v=HgIEqxIf7kY (accessed March 4, 2025).
7 Dawkins R. The Tyranny of the Discontinuous Mind. https://richarddawkins.com/articles/article/the-tyranny-of-the-discontinuous-mind (accessed March 4, 2025).