O combate à propagação do vírus do HIV/SIDA entrou para a história como um dos maiores compromissos da sociedade mundial na luta pela saúde e direitos humanos.[1] A intensificação e aumento dos programas de prevenção, o desenvolvimento da terapia antirretroviral (ART), disponibilidade da pílula de prevenção (HIV PrEP) e a oferta direcionada de testes de rotina resultaram em descidas significativas nas taxas de morbilidade e mortalidade da doença. Apesar de todos os avanços que nos permitem conseguir lidar com a doença nos dias de hoje, os portadores de HIV vivem com uma infecção que permanece incurável e com custos de tratamento muito elevados ao longo de toda a sua vida.
Até 2021, o número de novas infecções por HIV a nível global caiu 52% desde o pico histórico de 1997 e as mortes por SIDA desceram 64% desde 2004.[2] No entanto, na Europa, o número de infecções por ano continua a manter uma tendência crescente. Ao longo da última década, a taxa de infecções por HIV na região aumentou 5%, um valor principalmente impulsionado pelos números dos países da Europa de Leste. [3] Em 2020, mais de 100.000 pessoas foram diagnosticadas com HIV na Europa, das quais (81%) no Leste, 15% no Oeste e 4% no Centro Europeu. Este número representa uma queda de 24% em relação a 2019, em parte devido à diminuição da detecção de casos durante a pandemia de COVID-19. Até então, a Europa de Leste e Ásia Central eram as únicas regiões do mundo a registar um aumento de casos na última década. [4]
Apesar da proximidade geográfica, existe uma grande disparidade na prestação de cuidados e na gestão da doença nas diferentes regiões da Europa.[5] Estas disparidades – que vão desde diferenças de financiamento disponível, à capacitação do pessoal médico e mecanismos de monitorização – foram herdadas dos diferentes sistemas de saúde que desenvolveram as primeiras políticas de combate à propagação do vírus e tratamento do HIV nas décadas de 90 e 2000. Desde então, não só o perfil da doença mudou, como a globalização e a uniformização de políticas na União Europeia alterou completamente os padrões de comportamento e de movimentação de pessoas na região.
Outro desenvolvimento recente que deve ser tido em conta para a actualização destas políticas é a mudança nos grupos de pacientes mais afectados. Dados do Reino Unido mostram que em 2020, pela primeira vez na década, o número de novos casos diagnosticados de HIV foi mais elevado entre heterossexuais do que em homens que têm sexo com homens, mesmo tendo em conta que a testagem durante a pandemia caiu muito mais entre os primeiros.[6] A população heterossexual é também, em média, diagnosticada mais tarde, o que significa mais danos ao sistema imunológico no momento em que tomam conhecimento da infecção. Segundo o mesmo relatório, a percentagem de diagnósticos tardios foi de 51% em mulheres, 55% em homens heterossexuais e 66% em pessoas acima dos 65 anos de idade, comparativamente com uma percentagem de 29% entre os homens gays e bissexuais. Esta diferença pode ser motivada pela falta de consciencialização do risco de infecção entre heterossexuais, possivelmente uma herança dos anos 80 que parece manter-se presente na população actual. A mudança no perfil dos pacientes foi também verificada noutros países Europeus. Num questionário conduzido em 2014 em 24 países da Europa Central e de Leste, a mais frequente linha de transmissão reportada foi entre homens que têm sexo com homens em 10 países, contacto heterossexual em 9 países e uso de drogas injectáveis nos restantes 5.[3]
Juntamente com estas alterações, em 2022 um novo acontecimento está a tornar urgente a necessidade aumentar a vigilância do HIV na Europa – o início de um conflito armado nos países com as mais elevadas taxas de infecção da região.[7] Nos últimos 15 anos, a Ucrânia teve uma das maiores e mais bem-sucedidas respostas ao HIV na Europa, e a Guerra ameaça agora o retrocesso de todo esse esforço.
Todas as Guerras têm um efeito devastador generalizado no acesso e oferta de cuidados de saúde, afectando o progresso e a oferta de tratamento de todas as doenças. As organizações locais da Ucrânia estão particularmente preocupadas com o potencial descontrolo da propagação do HIV.[8] Estima-se que até ao momento da invasão Russa, cerca de 260.000 pessoas viviam com esta doença no país. Sendo que a maior parte das pessoas infectadas reside em áreas urbanas, as áreas mais afetadas pelo HIV são também as mais afetadas pela Guerra. Juntando a falta de seringas, de preservativos e materiais de higiene, ao elevado número de casos, a movimentação em massa da população e o uso de violência sexual como arma de guerra, seria difícil de imaginar cenário mais propício à propagação do vírus.
A ligação entre conflictos e o aumento da propagação de doenças sexualmente transmissíveis não é uma novidade. [9] Nestes contextos há um aumento da exposição a comportamentos de risco seja por via sexual, uso de drogas injectáveis, transfusões de sangue contaminado, ou contacto directo com ferimentos graves. Aliás, estes números elevados de infecção de HIV na Ucrânia já eram em parte um reflexo das situações de conflito no país. Em 2016, de uma população de 80.100 mulheres trabalhadoras sexuais, 5.2% testaram positivo para o vírus do HIV, uma percentagem que aumentou imenso nas áreas de conflito, chegando a ser estimada em 38.2% na zona Donetsk – onde o conflicto armado dura há pelo menos 8 anos. [10] A invasão da Ucrânia de 2022 já resultou no deslocamento forçado de mais de 5,8 milhões de pessoas para fora do país e mais 7,1 milhões internamente. Estima-se que mais de 90% destas pessoas são mulheres e crianças, os maiores grupos em risco de violência sexual, violação e tráfico durante o deslocamento. [11]
Esta ligação directa entre a situação de conflito actual e propagação do HIV requer uma acção urgente e mobilização por parte das autoridades de saúde Europeias. Não só é preciso aumentar o alcance das políticas de sensibilização e serviços de saúde, como também uniformizar as políticas e as prioridades a nível da região. Sem uma acção conjunta e estruturada que vá além das fronteiras físicas, como aconteceu durante o combate à COVID-19, será difícil criar uma resposta adequada às necessidades e que nos impeça de sofrer um retrocesso histórico no controlo da propagação do HIV e no tratamento da doença.
Sara Valente de Almeida
Imperial College London, School of Public Health, Infectious Disease Epidemiology
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
Referências:
- Smith J. (2016). Europe’s Shifting Response to HIV/AIDS: From Human Rights to Risk Management. Health and human rights, 18(2), 145–156.
- Global HIV & AIDS statistics (2021) — Fact sheet. https://www.unaids.org/en/resources/fact-sheet
- European Centre for Disease Prevention and Control/WHO Regional Office for Europe. HIV/AIDS surveillance in Europe 2021 – 2020 data. Stockholm: ECDC; 2021.
- Kirichenko A, Kireev D, Lopatukhin A, Murzakova A, Lapovok I, Saleeva D, Ladnaya N, Gadirova A, Ibrahimova S, Safarova A, Grigoryan T, Petrosyan A, Sarhatyan T, Gasich E, Bunas A, Glinskaya I, Yurovsky P, Nurov R, Soliev A, Ismatova L, Musabaev E, Kazakova E, Rakhimova V, Pokrovsky V. Prevalence of HIV-1 drug resistance in Eastern European and Central Asian countries. PLoS One. 2022 Jan 21;17(1):e0257731. doi: 10.1371/journal.pone.0257731. PMID: 35061671; PMCID: PMC8782385.
- Lazarus, J. V., Laut, K. G., Safreed-Harmon, K., Peters, L., Johnson, M., Fätkenheuer, G., Khromova, I., Vandekerckhove, L., Maciejewska, K., Radoi, R., Ridolfo, A. L., & Mocroft, A. (2016). Disparities in HIV clinic care across Europe: findings from the EuroSIDA clinic survey. BMC infectious diseases, 16, 335. https://doi.org/10.1186/s12879-016-1685-x
- UKHSA (2021). HIV testing, new HIV diagnoses, outcomes and quality of care for people accessing HIV services: 2021 report. The annual official statistics data release (data to end of December 2020).
- Gokengin, D. , Opreab, C. and Begovac, J. et al. (2018) HIV care in Central and Eastern Europe: How close are we to the target? International Journal of Infectious Diseases. Volume 70, May 2018, Pages 121-130.
- Speacial – War in Ukraine. UNAIDS. Available in: https://www.unaids.org/en/War-Ukraine-special
- Hankins, C., Friedman, S., Zafar, T. e Strathdee, S. (2002). Transmission and prevention of HIV and sexually transmitted infections in war settings, AIDS: November 22, 2002 – Volume 16 – Issue 17 – p 2245-2252
- International Crisis Group. Conflict in Ukraine’s Donbas: A Visual Explainer. Available in: https://www.crisisgroup.org/content/conflict-ukraines-donbas-visual-explainer
- European Parliament. (2022). War in Ukraine: protecting women refugees from violence and sexual exploitation. Available in: https://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20220429IPR28229/war-in-ukraine-protecting-women-refugees-from-violence-and-sexual-exploitation