Desde 1747, ano em que James Lind desenvolveu o que hoje se considera o primeiro ensaio clínico controlado da história, muitos avanços têm sido introduzidos na investigação clínica. Estes avanços são do foro ético, regulamentar, científico e tecnológico. Mas apesar desses avanços, a investigação clínica e, em particular, os Ensaios Clínicos continuam a enfrentar desafios importantes, incluindo o crescimento acelerado dos custos e as dificuldades de recrutamento e acompanhamento dos doentes (Fogel, 2018). Para o propósito desta breve reflexão, focar-nos-emos no potencial da tecnologia para o desenvolvimento da investigação clínica, já que a literatura recente tem demonstrado como esta pode ajudar a dar resposta aos desafios que o segmento enfrenta (Jette, 2019; Association of Clinical Research Organizations [ACRO], 2020).
É indubitável que a pandemia de COVID-19 acelerou transformações em curso na Saúde e, tal como no contexto da prestação de cuidados, também na investigação clínica veio mostrar um conjunto de fragilidades e o obsoletismo dos processos tradicionais. Neste período, diversas organizações reportaram interrupções nos estudos clínicos, quebras de, em média, 80% no recrutamento e aumentos significativos na duração dos estudos, com implicações onerosas para os doentes e para os promotores (Xue et al., 2020). Assim, e tal como no contexto da prestação de cuidados, também na investigação clínica, a pandemia obrigou à adoção de um conjunto de tecnologias e novos procedimentos, como televisitas, consentimento remoto (e-consent) e recolha remota de dados clínicos por via de dispositivos médicos sensorizados ou wearables, acelerando a implementação de Ensaios Clínicos descentralizados, ou híbridos. Estes ensaios tiram partido de tecnologia para levar a cabo os estudos de forma inteiramente remota, privilegiando abordagens centradas no participante, ou combinam elementos remotos/descentralizados onde não existem interações físicas entre o participante e o investigador com outros mais “tradicionais”, como visitas aos centros.
Experiências bem-sucedidas como o caso reportado por Lenze et al. (Lenze et al., 2020) e o otimismo dos peritos, têm acelerado os procedimentos e a investigação sobre o tema (Wallis, 2021). Parece ser consensual que este processo é irreversível e perdurará para além da pandemia de COVID-19.
O processo de descentralização dos ensaios clínicos passará, necessariamente, pela digitalização de grande parte dos processos, do recrutamento à recolha de real-world data e tratamento dos dados, preservando os benefícios da aleatorização e trazendo vantagens inegáveis para os promotores, incluindo maior eficiência e redução de custos, bem como para os participantes, que veem as suas deslocações aos centros reduzidas ou eliminadas. Estes modelos descentralizados ou híbridos e a utilização de tecnologias trazem ainda inúmeros benefícios para investigação clínica em sentido mais amplo, seja pela recolha de grandes quantidades de dados, que podem ser usados para a previsão, tratamento e personalização de cuidados (utilização secundária), seja pela promoção da diversidade no recrutamento e da retenção dos participantes nos estudos e ainda pela aceleração no desenvolvimento das soluções terapêuticas.
A implementação destas abordagens remotas não é, naturalmente, isenta de desafios. Na literatura são identificados vários, incluindo a validação das diferentes tecnologias pelas entidades reguladoras, a propensão para selecionar participantes para os estudos mais capazes de utilizar tecnologia, a integridade e segurança dos registos eletrónicos e as questões da confidencialidade e privacidade dos dados pessoais dos participantes.
Em Portugal, a evolução dos ensaios clínicos tem sido positiva, embora aquém das expectativas, com 175 pedidos submetidos ao Infarmed, em 2021. Existe, indubitavelmente, um enorme potencial de crescimento desta área no nosso país que importa promover e acelerar. Afinal de contas, são demasiados os diagnósticos e vários os estudos que nos indicam as vantagens da investigação clínica para o avanço do conhecimento em Saúde, para a economia nacional e, mais importante do que tudo, para os doentes, que beneficiam de um acesso privilegiado a terapêuticas inovadoras. Alinhado com esta ideia, numa recente intervenção no âmbito do Dia Internacional dos Ensaios Clínicos, o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, reiterou a ambição do governo de duplicar o número de ensaios clínicos realizados em Portugal, até ao final desta legislatura.
Embora os desafios de fazer investigação clínica em Portugal extravasem o tema desta reflexão, não é descabido relembrá-los: um sistema pouco articulado, sem resposta “a uma só voz”, pouca autonomia dos centros de investigação clínica hospitalares, a falta de profissionalização da atividade, entre outros fatores, confluem numa limitada capacidade de resposta em tempo útil, na dificuldade de planeamento, em falhas no recrutamento e na retenção de participantes, com custos elevados para o país e para os cidadãos. Aqui, tanto o Accelerating Clinical Trials in the EU (ACT EU) como o novo regulamento Europeu dos Ensaios Clínicos serão, porventura, oportunidades de capacitação e integração de Portugal num ambiente mais global, coeso e competitivo (European Medicines Agency [EMA], 2022).
No âmbito de um projeto de Mestrado (Sousa, 2022, submetida em Abril 2022) envolvendo a Universidade do Minho e o Health Cluster Portugal, perguntou-se como poderá a implementação de tecnologias nos processos de gestão e condução dos estudos clínicos ser um catalisador do crescimento da investigação clínica e, em particular, dos Ensaios Clínicos, em Portugal. O estudo reviu a literatura e procurou identificar experiências nacionais e internacionais de descentralização de Ensaios Clínicos, através de entrevistas, mapeando ainda os desafios e as oportunidades para Portugal.
Em primeiro lugar, o estudo ajudou a confirmar a convicção de que, também na vertente da investigação clínica, a transformação tecnológica moldará o setor da Saúde nos próximos anos. Esta tendência revela-se uma oportunidade importante para Portugal, que tem vindo a capacitar as suas instituições e o seu capital humano, nomeadamente nas áreas tecnológicas, potenciando o desenvolvimento de soluções inovadoras de elevado valor acrescentado para a Saúde. Percebe-se ainda que os desafios não são de âmbito conceptual ou tecnológico, mas sim político e organizacional. As alterações necessárias requerem investimentos em tecnologias de informação, em interoperabilidade, em sistemas de proteção de dados e na formação dos profissionais. É também essencial investir na promoção da literacia digital e para a Saúde, permitindo o devido acompanhamento dos participantes, ainda que em formato remoto. Exemplos de outras geografias demonstram que a liderança, a capacidade de adaptação, a confiança dos promotores e dos participantes são fatores chave para o sucesso desta transição digital na investigação clínica. Em particular, é desejável um maior envolvimento dos participantes na construção de protocolos e soluções tecnológicas, a padronização dos requisitos exigidos para as tecnologias utilizadas no contexto dos Ensaios Clínicos, a digitalização da gestão documental, da recolha à revisão de contrato e arquivo. Por exemplo, o recurso a soluções automatizadas para gestão da resposta aos pedidos de Ensaios Clínicos, entregando aos promotores informação atualizada e em tempo real sobre o número de centros em Portugal com população para o ensaio, o número de doentes por ano, os recursos humanos, as infraestruturas e experiência, obviaria um dos maiores desafios em Portugal.
Do ponto de vista do mercado, o país é composto principalmente por empresas startup e de pequena e média dimensão. A sua agilidade e o seu caráter inovador podem desempenhar um papel importante na capacidade de Portugal ser um early adopter de tecnologias também no segmento dos Ensaios Clínicos, se for capaz de colocar no mercado produtos atrativos e diferenciadores.
Mudemos o foco do problema para a solução! Para grande parte destes temas da digitalização e introdução de tecnologias na Saúde, incluindo no segmento dos Ensaios Clínicos, talvez já não se justifique discutir sobre se devemos ou não proceder à sua implementação. Talvez o foco deva estar no como as implementar: de forma segura, fiável, em diálogo permanente com o regulador e de forma equitativa e participativa, em proximidade com os utilizadores finais, leia-se profissionais de saúde, investigadores clínicos e participantes.
Diana Sousa
Aluna de mestrado em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
Patrícia Patrício
Gestora de Conhecimento e Inteligência, Health Cluster Portugal
Paula Veiga Benesch
Professora Auxiliar, Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
Referências:
Association of Clinical Research Organizations (ACRO). (2020). Decentralizing Clinical Trials: A New Quality-by-Design, Risk-Based Framework. 1–13. https://www.acrohealth.org/dctwhitepaper/
European Medicines Agency (EMA). (2022). Accelerating Clinical Trials in the EU (ACT EU) Delivering an EU clinical trials transformation initiative. January 2022, 1–5. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020DC0761&from=NL
Fogel, D. B. (2018). Factors associated with clinical trials that fail and opportunities for improving the likelihood of success: A review. Contemporary Clinical Trials Communications, 11(August), 156–164. https://doi.org/10.1016/j.conctc.2018.08.001
Jette, A. M. (2019). The Next Generation of Clinical Trials. Physical Therapy, 99(11), 1429–1430. https://doi.org/10.1093/ptj/pzz133
Lenze, E. J., Mattar, C., Zorumski, C. F., Stevens, A., Schweiger, J., Nicol, G. E., Miller, J. P., Yang, L., Yingling, M., Avidan, M. S., & Reiersen, A. M. (2020). Fluvoxamine vs Placebo and Clinical Deterioration in Outpatients with Symptomatic COVID-19: A Randomized Clinical Trial. JAMA – Journal of the American Medical Association, 324(22), 2292–2300. https://doi.org/10.1001/jama.2020.22760
Sousa, D. (2022). Integração de Soluções Tecnológicas na Gestão dos Estudos Clínicos em Portugal; Submetida a provas públicas em Abril 2022
Wallis, C. (2021). COVID Has Pushed Medical Research into Remote Trials, Benefiting Patients and Scientists. https://www.scientificamerican.com/article/covid-has-pushed-medical-research-into-remote-trials-benefiting-patients-and-scientists/
Xue, J. Z., Smietana, K., Poda, P., Webster, K., Yang, G., & Agrawal, G. (2020). Clinical trial recovery from COVID-19 disruption. Nature Reviews Drug Discovery, 19(10), 662–663. https://doi.org/10.1038/d41573-020-00150-9