Há uma velha fábula que conta a história do cavalo de um inglês. A história é pequena e fala-nos de um homem que tinha um cavalo que o ajudava nos trabalhos agrícolas. Por necessidade de contenção de custos, o senhor decidiu reduzir a ração do animal. Todos os dias reduzia um pouco a ração do seu animal e este lá ia sobrevivendo, cada vez mais fraco, cada vez com menos forças, mas lá continuava a fazer o seu trabalho. Até que um dia encontrou o seu cavalo e exclamou “Agora que te tinhas habituado a não comer é que morreste!”.
Quem acompanha de perto os profissionais de saúde em Portugal rapidamente se apercebe que estes profissionais se encontram num estado de exaustão física e emocional, particularmente nestes dois últimos anos. A carga de trabalho normal e suplementar à qual têm sido sujeitos, cumulativamente com a pressão emocional motivada pela pandemia e a ausência de férias, tem potencial de, à semelhança do cavalo do inglês, se tornar a causa de morte silenciosa do sistema de saúde. Os dados disponíveis no Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS) permitem-nos retirar algumas ilações.
Se compararmos os recursos humanos na saúde antes do início da pandemia (fevereiro de 2020) e os últimos dados disponíveis (fevereiro de 2022), a evolução é crescente[1]: temos hoje mais de 15 mil novos profissionais. Para tal contribuiu a contratação de mais de 5 mil enfermeiros, 1,6 mil médicos, 4 mil assistentes operacionais e 1,5 mil assistentes técnicos (Figura 1).
Apesar do reforço do número de profissionais, o trabalho suplementar, vulgarmente conhecido por “horas extra”, atingiu o seu máximo em 2021. Neste ano, foram realizadas mais de 21,9 milhões de horas extraordinárias, um valor superior ao de 2020 e distante dos valores observados até então (Figura 2). Entre os principais fatores por trás deste crescimento está a divisão de equipas em espelho, o aumento da necessidade de cuidados motivados pela pandemia e o esforço de recuperação de atividade do SNS.
Sabendo que no final de 2021 existiam 148.452 profissionais, o número de horas extra que um profissional de saúde do SNS realiza, em média, por ano, ascende às 148. Se tivermos em consideração, através de um simples exercício, que um profissional com 35 horas por semana, ao final de um mês (4 semanas) realiza 140 horas, é possível compreender que, por ano, estes profissionais trabalham mais um mês em horas extra. Uma vez que o crescimento do número de horas extraordinárias é superior ao crescimento do número de profissionais, este valor é superior às registadas em 2019 e 2020: 107 e 120 horas, respetivamente[2].
Outros dados disponíveis permitem-nos compreender as ausências ao trabalho por tipologia (Figura 3).
Apesar do número de profissionais ter crescido 7% e 10% em 2020 e 2021 face a 2019, o número de ausências ao trabalho aumentou para 24% e 22%, respetivamente. Certamente que não surpreenderá que os motivos que contribuíram para este aumento foram as ausências por doença, por acidente em serviço ou doença profissional e proteção na parentalidade.
Em sentido inverso, as ausências por férias com uma redução de 32% e 45% em 2020 e 2021 em comparação com 2019, bem como a inexistência (quase) total de greves – diminuição de 98% em 2021 em comparação com 2019 – permitiram colocar um maior número de horas ao serviço dos doentes.
De igual forma, e tendo como base o ano de 2019, se contabilizarmos os dias de formação que estes profissionais não realizaram nos últimos dois anos, observa-se que se perdeu mais de um ano de formação: os dias de ausências para formação em 2019 foram de 243 mil; os dias de ausência “não realizados” em 2020 e 2021 em comparação com 2019 foram de 288 mil.
Por tudo isto, os profissionais de saúde em Portugal correm o risco de se tornarem o cavalo do inglês dos tempos modernos e o problema não é ração a menos: é cansaço físico e desgaste emocional a mais. Os profissionais de saúde encontram-se exaustos e desmotivados; não admira por isso um artigo da revista Forbes referente ao relatório “Clinician of the Future”, onde se indica que um em cada três médicos considera abandonar a sua profissão até 2024 e que até 75% dos profissionais de saúde deixarão a profissão até 2025.
Seja esta uma estimativa real ou um mero exercício de adivinhação, a certeza que fica é que se nada fizermos por estes profissionais da saúde, a fuga de capital humano continuará. Não querer cuidar de quem cuida de nós é um ato de autoflagelação. E tal como o cavalo do inglês, um dia poderá ser tarde demais.
“Agora que se tinham habituado a trabalhar sem parar é que morreram!”
Diogo Marques
Healthcare Consultant na MOAI
Referências:
- Trabalhadores por Grupo Profissional, Portal da Transparência do SNS. Acedido a 21/03/2022. https://transparencia.sns.gov.pt/explore/dataset/trabalhadores-por-grupo-profissional/information/?disjunctive.regiao&disjunctive.instituicao&sort=periodo
- Trabalho Noturno, Normal e Suplementar, Portal da Transparência do SNS. Acedido a 21/03/2022. https://transparencia.sns.gov.pt/explore/dataset/contagem-das-horas-de-trabalho-nocturno-normal-e-extraordinario/table/?sort=tempo
- Ausências para Formação e Aperfeiçoamento Profissional, Portal da Transparência do SNS. Acedido a 21/03/2022. https://transparencia.sns.gov.pt/explore/dataset/ausencias-para-formacao-e-aperfeicoamento-profissional/table/?disjunctive.regiao&sort=tempo
- Ausência ao Trabalho por Tipologia, Portal da Transparência do SNS. Acedido a 21/03/2022. https://transparencia.sns.gov.pt/explore/dataset/contagem-dos-dias-de-ausencia-ao-trabalho-segundo-o-motivo-de-ausencia/table/?sort=tempo
- Unless We Future-Proof Healthcare, Study Shows That By 2025, 75% Of Healthcare Workers Will Leave The Profession, Forbes. https://www.forbes.com/sites/jackkelly/2022/03/15/unless-we-future-proof-healthcare-study-shows-that-by-2025-75-of-healthcare-workers-will-leave-the-profession/?sh=12fcc9ee2bcb
[1] Nota: O número de profissionais não se traduz instantaneamente num reforço da capacidade de prestação. Enquanto não existir a conversão destes números em profissionais a tempo completo (os chamados FTEs, full-time equivalents), o exercício de comparação da capacidade de prestação de cuidados do SNS exclusivamente pelo número de profissionais terá limitado valor.
[2] Nota: O número de profissionais engloba desde médicos, enfermeiros e farmacêuticos a assistentes técnicos, assistentes operacionais e informáticos. Se excluirmos alguns destes grupos profissionais que têm uma menor tradição na realização de horas extra, o denominador diminui e o número de horas adicionais estender-se-á bem para além de um mês.