Em Portugal, cerca de 10,6% dos agregados familiares em 2015 acumulavam gastos “catastróficos” com a saúde, ou seja, mais de 40% do total do seu orçamento familiar correspondia a despesa em saúde [1]. A incidência de despesa catastrófica em saúde é o indicador mais utilizado para medir dificuldades financeiras, face à capacidade de pagamento da despesa não reembolsável em saúde. Estes dados foram recolhidos na situação pré-pandémica e revelam que temos a quarta maior proporção de famílias que enfrentam despesa catastrófica em saúde em toda a OCDE, a seguir à Hungria, Letónia e Lituânia [1].
As famílias portuguesas pagam cada vez mais do próprio bolso. Desde 2010 que as despesas não reembolsadas aumentaram mais de 5 pontos percentuais e são hoje a segunda maior fonte de despesa do sistema de saúde, em cerca de 30,5% — muito acima da média da União Europeia, que se situa em cerca de 15,4%. Durante o mesmo período, a primeira fonte de despesa, a despesa pública, diminuiu quase seis pontos percentuais (de 66,6% em 2010 para 61,0% em 2019) e está abaixo da média da União Europeia em 20 pontos percentuais (79,7 %), mostrando a tendência crescente de sobrecarga da despesa em saúde suportada pelas famílias portuguesas [2]. Os cuidados ambulatórios representam cerca de metade das despesas não reembolsáveis em saúde (52%), seguidos dos produtos farmacêuticos (32%) [1].
A falta de protecção financeira do sistema de saúde reduz o acesso aos cuidados de saúde, mina o estado de saúde e aprofunda as desigualdades de saúde e socioeconómicas, bem como o risco de pobreza. Os últimos dados do inquérito European Union Statistics on Income and Living Conditions do Eurostat mostram níveis de desigualdade preocupantes em Portugal: 63% dos portugueses no quintil de rendimentos mais alto afirmam estar de boa saúde, contra apenas 38% no quintil mais baixo, enquanto aqueles com habilitações de nível superior vivem mais 1 a 4 anos do que os que possuem níveis de instrução mais baixos [2]. As famílias mais pobres e que sofrem de doenças crónicas ou incapacitantes são particularmente vulneráveis. Na verdade, a doença é hoje uma das faces da pobreza que, em 2018, afligia quase dois milhões de portugueses, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística [3].
A pandemia veio dramatizar um acesso insuficiente aos cuidados médicos de qualidade, que verificava já uma degradação dos tempos de espera para consultas e cirurgias programadas no SNS [2]. É mesmo urgente adoptar novas políticas de protecção financeira e reequacionar a capacidade e cobertura do SNS em oferecer cuidados médicos de qualidade. A legislação de 2020 que aboliu as taxas moderadoras no SNS não resolverá significativamente as dificuldades financeiras que os portugueses enfrentam com as despesa de saúde, pelo seu valor insignificante, ainda que isente mais de 60% da população.
Vamos discutir uma melhor política e gestão de saúde? Para bem da saúde dos portugueses. Para bem de uma política de saúde e social inclusiva e de combate à pobreza.
Eliana Barrenho
OCDE, Economista e Analista de Políticas de Saúde
As opiniões e argumentos expressos neste documento são de responsabilidade da autora e não reflectem necessariamente as opiniões oficiais da OCDE ou dos seus países membros. A autora desta publicação não adopta o novo Acordo Ortográfico.
[1] OECD (2021), Health at a Glance 2021: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/ae3016b9-en.
[2] OECD/European Observatory on Health Systems and Policies (2021), Portugal: Country Health Profile 2021, State of Health in the EU, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/8f3b0171-en.
[3] Palos, Ana Cristina, Rodrigues, Carlos Farinha, Pereira, Elvira et al (2021), Faces da pobreza em Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, https://www.ffms.pt/FileDownload/6e8cd87d-5021-47ea-aa3e-6d4870aa8b2b/faces-da-pobreza-em-portugal