Desde que a Conta Satélite da Saúde começou a ser publicada, cobrindo os anos desde 2000, temos acesso a uma visão ampla, com grande rigor e precisão, do sistema de saúde e da sua evolução. A informação contida nas Contas Satélites é surpreendente e merecia ser mais bem conhecida pela população em geral. A parte mais familiar para os interessados nas questões económicas da saúde diz respeito ao financiamento, ou seja, às origens dos fundos que pagam a saúde. Entre 2000 e 2019 a proporção pública do financiamento desceu de 69,8% para 63,8% das despesas totais em saúde. Uma parte menos conhecida são os dados relativos à prestação, ou seja, para onde vão os fundos. Os dados disponíveis para identificar os tipos de prestadores terminam em 2018, mas entre 2000 e 2018 a proporção do setor público na prestação reduziu-se de 46,1% para 39,0% das despesas totais. Não é um engano: em 2000 o setor público era já responsável por menos de metade do valor da prestação de cuidados de saúde e essa percentagem minoritária decresceu 7,1 pontos percentuais entre 2000 e 2018.
Uma análise estatística básica da evolução das componentes públicas do financiamento e da prestação revela que a tendência para a “desestatização” da saúde é independente dos partidos no governo, ou seja, não se encontram efeitos estatisticamente significativos que permitam descortinar diferenças no ritmo de “desestatização” entre períodos com governos liderados pelo Partido Socialista e períodos com governos liderados pelo Partido Social Democrata.
É possível chegar a várias constatações baseadas nos factos atrás referidos. Uma delas é que existe uma grande diferença entre as retóricas políticas em conflito, que caraterizam o discurso ideológico dos partidos, e a convergência real de resultados que procede da sua governação. Isso significa que, para um cidadão, participar na discussão dos temas em moda em cada momento, mergulhar na espuma dos dias, não deverá ter grande significado ou consequências. Por isso, não tenho grande apetência por defender esta ou aquela reforma na saúde, esta ou aquela mudança de direção na arquitetura do sistema, esta ou aquela alteração na estratégia de uso dos recursos na saúde.
Para além de a evolução do sistema de saúde parecer estar a ocorrer, em grande parte, à margem dessas discussões, creio que a pandemia da Covid-19 criou um problema de grande dimensão a resolver. Parece-me que este problema tem uma urgência e uma importância que se deveriam sobrepor a quaisquer retóricas eleitorais. Esse problema é o enorme défice de prevenção, de monitorização e de prestação de cuidados que se tem vindo a acumular no caso das doenças não-covid. Sabemos que, aparentemente, a incidência de vários tipos de doenças crónicas se reduziu significativamente. Ocultos por detrás de um manto pesado de medidas para a Covid-19, o sistema de saúde tem ignorado ou tratado de forma insuficiente os problemas cardiovasculares, cerebrovasculares, oncológicos, respiratórios, metabólicos, etc. que se iniciaram ou que se agravaram desde o início oficial da pandemia em Portugal, em março de 2020. Desde a distância mantida pelos doentes das unidades de saúde, motivada pelo receio de infeção, até ao afastamento ativo/intencional dos doentes por re-prioritização da atividade nas unidades de saúde, criou-se um défice acumulado na prestação de cuidados de saúde. Este certamente não é alheio ao excesso de mortalidade registado, muito para além da atribuível à Covid-19, e que poderá vir a ter consequências graves, não só em termos de mortalidade futura como na saúde das populações com a consequente delapidação da sua qualidade de vida relacionada com a saúde.
Coligir as evidências disponíveis, conceber os planos de ação para enfrentar esta pandemia não-covid e assegurar a sua implementação com eficácia, parecem-me ser as mais relevantes prioridades do país nos próximos tempos na área da saúde. Este é um problema concreto, a necessitar de resolução e que deveria receber toda a atenção e os recursos necessários… Poucas forças políticas têm dado a este problema a atenção que merece. Espero que isso mude e que os responsáveis pelas políticas de saúde que resultem das eleições de 30 de janeiro ataquem estes problemas com a urgência e a eficácia que se impõem.
Miguel Gouveia
Católica Lisbon School of Business and Economics