Convidámos a Sara Almeida, a terminar o doutoramento em Economia da Saúde na Universidade Nova de Lisboa, a partilhar os trabalhos da sua tese. Fique a conhecer os resultados da investigação da Sara.
Acesso a cuidados de saúde em contextos de pobreza e conflito
Em países de baixo e médio rendimento os desafios que se atravessam no caminho da universalização do acesso a cuidados de saúde impõem riscos à integridade física e privam a população do direito a um nível de vida suficiente para assegurar a saúde e o bem-estar de cada um e das suas famílias.
Nos três artigos científicos que constituem a minha tese de doutoramento exploro dois sistemas de saúde muito distintos em dois contextos extremamente complexos. Em primeiro lugar, o sistema de saúde da Indonésia, único pela sua diversidade e contexto geográfico e, em segundo, viajamos até ao Líbano onde analisamos o acesso a saúde em campos de refugiados da Palestina – uma comunidade sob constantes tensões políticas e pouco integrada na sociedade onde vive há mais 70 anos.
Medicina tradicional – pode o passado ter um futuro?
Em 2014, o governo da Indonésia implementou um Plano Nacional para alcançar o acesso a cuidados de saúde universal no País. [1] No entanto, com pouco controlo e regulamentação, a probabilidade de existirem grandes ineficiências e má gestão de recursos é muito alta, levando a poucas – se não nenhumas – melhorias no nível do estado de saúde dos cidadãos. Neste artigo exploramos um assunto que é muitas vezes marginal ao debate científico, mas com grande relevância para muitos países e culturas – a interacção entre sistemas de saúde convencionais e tratamentos tradicionais. Para perceber esta dinâmica, avaliamos o impacto do aumento na prestação de serviços de saúde na procura por praticantes de medicina tradicional. É utilizada uma base de dados longitudinal com dados em painel recolhidos em 3 anos diferentes (2007, 2010 e 2014) no âmbito de um dos maiores Inquérito às Famílias realizado no País (IFLS).[2] Na análise, utilizamos modelos de decisão do paciente, por tipo de tratamento e número de visitas. Medimos em particular o impacto da abertura de um estabelecimento de saúde (clínica, centro de saúde ou hospital) (“experiência natural”) na procura por práticas tradicionais, bem como os indicadores de saúde e bem-estar associados com o uso de ambas as vertentes de tratamento.
Os resultados indicam que a procura por tratamentos tradicionais sofre com a disseminação do sistema nacional de saúde, com evidência tanto de efeitos de substituição como de complementaridade entre ambos os sistemas. Nomeadamente, um aumento de 1% no custo para o paciente em clínicas privadas está associado a um aumento na probabilidade de visitar um praticante de medicina tradicional em 56.1 pontos percentuais (p.p,) enquanto que o mesmo aumento nos custos dos serviços públicos está associado a um aumento da probabilidade na procura por tratamentos tradicionais em 5 p.p..
Este estudo mostra que a população Indonésia recorre a ambos os serviços simultaneamente e que variações nos custos de tratamento na medicina convencional levam à procura por alternativas. Ignorar a sua presença no mercado pode assim levar a políticas desajustadas da realidade. Por falta de regularização, esta prática pode por um lado, prejudicar o estado de saúde da população e, por outro, o bom funcionamento do sistema nacional de saúde. Em alternativa, fomentar a cooperação entre ambos os sistemas poderá melhorar os cuidados de saúde e aumentar a proximidade entre os cuidados médicos e a população que reside nas zonas rurais e mais desconectadas dos centros urbanos.
Co-pagamentos e equidade no acesso a cuidados de saúde
O segundo sistema de saúde que nos propomos estudar actua no Líbano, em particular nos campos de refugiados da Palestina. Neste contexto, os serviços de educação saúde e protecção social são assegurados pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA).[3] Em 2016, a UNRWA, que foi criada com o propósito de atender às dificuldades desta população, sofreu enormes cortes no apoio financeiro internacional vindo dos Estados Unidos, o que levou a restruturações e a medidas de contenção de custos que tiveram consequências no nível de vida dos seus beneficiários. No seguimento destes cortes de financiamento, a Agência viu-se forçada a deixar de fornecer alguns cuidados de saúde de forma gratuita nos hospitais públicos e privados que contrata.[4], [5], [6]
O nosso projeto mede o impacto da introdução de uma componente de co-pagamento de 10% nos custos de hospitalização para tratamentos secundários, com efeito para refugiados palestinos do Líbano (PRL) registados na UNRWA. Este co-pagamento foi introduzido em todos os hospitais públicos e privados contratados pela UNRWA, sendo que os Hospitais do Crescente Vermelho (equivalente à Cruz Vermelha) continuaram a fornecer este tratamento de forma gratuita. Esta análise ex-post fornece assim uma visão sobre a direção e magnitude do impacto desta nova política em termos de procura por cuidados de saúde por tipo de hospital, tempo médio de internamento e custos de tratamento. Os dados utilizados foram recolhidos pela UNRWA e correspondem ao total da população abrangida por esta política que utilizou os serviços hospitalares antes e depois da sua implementação em 2016 e 2017. Para analisar os efeitos da introdução do co-pagamento usamos modelos logit multinomial, binomial negativo e modelos lineares, controlando para características da doença, do paciente e do hospital.
A figura 1 mostra a evolução do número de visitas ao longo do ano de 2016 e podemos observar que a partir de junho a procura por Hospitais do Crescente Vermelho (CV) tem uma tendência crescente, ao contrário da tendência nos restantes.
Figura 1 – Número de visitas por tipo de hospital
Depois da nova política ter sido implementada, estimamos que a probabilidade de um paciente escolher um Hospital CV em vez de um hospital privado ou público aumentou em 18 p.p. Esse impacto foi mais sentido em episódios com estadias mais longas, que são também os casos mais graves e mais caros. Os restantes indicadores mostram que o tempo médio de permanência diminuiu para todos os hospitais e, em termos de custos, não conseguimos encontrar um impacto estatisticamente significativo nem para o fornecedor (UNRWA), nem para o paciente (por terem adaptado a procura).
A introdução deste co-pagamento de 10% para cuidados hospitalares secundários teve um impacto no orçamento dos pacientes, que os levou a mudar a sua escolha de hospital para uma opção mais barata – não necessariamente melhor. Além disso, os hospitais CV são, de todos, os com menos recursos e que podem entrar em rutura mais facilmente. Consideramos assim que esta política deve ser acompanhada pela introdução de condições especiais para pacientes em estado de saúde grave e com severas restrições financeiras, os mais propensos a ser prejudicados por mudarem seu padrão de escolhas devido ao aumento nos custos.
Mulheres chefes de família em campos de refugiados da Palestina
No segundo projecto em que também utilizamos dados de campos de refugiados da Palestina no Líbano, exploramos as potenciais diferenças em termos de despesas de saúde entre famílias chefiadas por homens e mulheres e fazemos uma primeira abordagem à avaliação de problemas de saúde mental associados à liderança, neste contexto.
Sujeitas a uma forte estigmatização numa comunidade patriarcal, as mulheres chefes de família em campos de refugiados da Palestina têm maiores desafios para conseguirem atender às necessidades básicas das suas famílias.[7] Este estudo procura perceber como os membros destas famílias são afectados e se o papel de chefe de família tem consequências diferentes para as mulheres. Para conseguirmos analisar as diferenças entre os tipos de agregados (agregados com liderança feminina (AF) e agregados com liderança masculina (AM)), fizemos também uma análise sobre a composição das famílias que pretendemos analisar. Os dados são de um Inquérito à população conduzido pela Universidade Americana de Beirut em 2010 e 2015. A análise é assim realizada com dados transversais (cross-sectional) aos quais aplicamos um modelo de duas partes (probit e GLM), propensity score matching e um modelo probit para a secção da saúde mental.
A figura 2 demonstra a percentagem de gastos total do agregado por categoria. Os dados mostram que os AF gastaram mais em saúde (proporcionalmente ao total da despesa) em ambos os anos sob análise. No seguimento deste estudo exploramos estas diferenças mais em detalhe no sentido de compreender se são efectivamente um reflexo de preferências ou são escolhas por necessidade intrínsecas à composição das famílias, uma vez que a média de idades dos AF é mais alta do que a média de idades nos AM.
Figura 2 – Despesas por categoria em percentagem da despesa total do agregado
Os resultados do modelo de propensity score matching mostram que os gastos com saúde como % do gasto total do agregado são de 2.2 p.p. superiores em famílias lideradas por mulheres em 2010 e 2.3 p.p em 2015. Esta diferença é maior nas famílias lideradas por mulheres viúvas ou solteiras. Com este tipo de modelo conseguimos criar um grupo artificial de controlo (AM) e um grupo artificial de tratamento (AF) que dá robustez à hipótese de que as diferenças nos gastos estão associados a uma preferência das líderes mulheres, que tem impacto nos restantes membros da família. No que diz respeito à saúde mental, todos os indicadores são piores para mulheres líderes (relativamente aos líderes homens) e o efeito parece ser impulsionado pelas líderes viúvas, que constituem a maior parte do grupo de mulheres líderes na amostra.
Destacamos assim a necessidade de continuar a providenciar apoio financeiro a estas famílias em particular, devendo também ser considerada uma abordagem mais intersetorial que permita prevenir graves danos psicológicos intergeracionais, que mostramos serem mais presentes em famílias com liderança feminina.
Sara Valente de Almeida
Email: sara.v.almeida.2015@novasbe.pt
Twittter: @SaraV_Almeida
Site: https://sites.google.com/view/saravalmeida
Referencias
[1] Elizabeth Pisani, Maarten Olivier Kok, Kharisma Nugroho, Indonesia’s road to universal health coverage: a political journey, Health Policy and Planning, Volume 32, Issue 2, March 2017, Pages 267–276, https://doi.org/10.1093/heapol/czw120
[2] RAND – The Indonesia Family Life Survey (IFLS). https://www.rand.org/well-being/social-and-behavioral-policy/data/FLS/IFLS.html
[3] Al Husseini, J. UNRWA and the Refugees: A Difficult but Lasting Marriage. Journal of Palestine Studies, 40(1), 6–26, 2010, https://doi.org/10.1525/jps.2010.xl.1.006
[4] Alastair et al. Ager. In support of UNRWA appeal for health and dignity of Palestinian The Lancet, 391(10127):1260, 2018.
[5] Sharmila Devi. Funds cut for aid in the occupied Palestinian territory. The Lancet, 392(10151), 2018.
[6] Akiko et al. Kitamura. Health and dignity of Palestine refugees at stake: a need for international response to sustain crucial life services at UNRWA. The Lancet, 392(10165):2736 | 2744, 2018.
[7] Yoosefi Lebni, J., Mohammadi Gharehghani, M., Soofizad, G. et al. Challenges and opportunities confronting female-headed households in Iran: a qualitative study.BMC Women’s Health 20, 183, 2020, https://doi.org/10.1186/s12905-020-01046-x