Os últimos tempos têm sido pródigos em números, em interpretação de números, em conclusões que decorrem da interpretação de números. Para quem tem uma vida profissional baseada em números, cujo trabalho consiste em comparar acréscimos de custos com ganhos em saúde, tem sido impressionante acompanhar todo este processo. Sem dúvida que esta vontade generalizada de analisar números terá consequências positivas, mas continua a ser preciso ver as hipóteses que influenciam os números, ver o que não está lá, ter uma leitura crítica das conclusões retiradas.
Um dos primeiros assuntos em voga foi a prontidão das decisões dos governos. O Político, por exemplo, apresentou um gráfico em que mostra o número de dias entre a terceira morte e as decisões de confinamento em vários países. O governo português parece ter sido dos mais prudentes entre os países analisados. Mas terá mesmo havido maior prudência? Ou apenas mais informação? Parece razoável admitir que numa pandemia global as decisões a nível nacional não dependem apenas do que ocorre em cada país, mas também do que ocorre em países próximos – até porque isso influencia a forma como a população encara o problema e reage a decisões difíceis! O dia zero, o dia que permite comparar a prontidão da tomada de decisão em vários países, talvez não seja o dia da terceira morte nacional mas o dia em que o alarme social se tornou óbvio. Em Portugal, a terceira morte por Covid-19 ocorreu a 20 de março, mas o dia relevante para a perceção generalizada do problema terá sido algures na semana anterior.
O assunto do momento é a análise da diferença entre a mortalidade reportada como sendo por Covid-19 e a mortalidade excessiva total (por comparação com períodos homólogos). A ideia é que parte da mortalidade excessiva não diretamente imputada à Covid-19 se poderá dever a mortes que ocorreram por a prestação de cuidados de saúde estar muito centrada na Covid-19 (seja porque os doentes “fogem” dos prestadores seja porque os prestadores se focam demasiado na Covid-19). A este propósito um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública mostra um número impressionante: entre 16 de março e 14 de abril houve 615 mortes em excesso, não imputadas à Covid-19. Neste caso, o dia da primeira morte marca o início da análise.
Mas e se o dia inicial fosse 1 de janeiro? Os próprios autores indicam que até 14 de abril a mortalidade excessiva total foi de 157 mortes. É possível analisar os dados e concluir que a um défice de mortalidade em janeiro e fevereiro se seguiu uma compensação em março. Havendo, a 14 de abril, 599 mortes atribuídas à Covid-19, poder-se-ia concluir que houve menos 442 mortes por outras causas. Uma conclusão completamente diferente apenas por alteração do primeiro dia da análise! Mas que também terá algumas hipóteses implícitas…
Links:
- https://www.politico.eu/article/europes-coronavirus-lockdown-measures-compared/
- https://barometro-covid-19.ensp.unl.pt/wp-content/uploads/2020/04/excesso-de-mortalidade-em-portugal-em-tempos-de-covid-19-21.04.2020.pdf
Luís Silva Miguel
CEMBE, Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência