No decorrer da semana passada, e na sequência da posição anunciada pelo Ministério da Saúde de que não financia o tratamento de doentes COVID-19 pelo sector privado exceto se referenciados pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS), as duas maiores operadoras de seguros de saúde em Portugal tomaram posições diametralmente opostas. Enquanto a Multicare (Fidelidade) decidiu, via acordo com a Associação Portuguesa da Hospitalização Privada, assegurar a cobertura do tratamento dos seus segurados com COVID-19 em hospitais privados por iniciativa dos doentes e sem referenciação pelo SNS*, a Medis (Ageas) comunicou que não seguirá esta via. E justifica a sua posição por reconhecer exclusivamente ao SNS e Direção Geral da Saúde (DGS) a responsabilidade de coordenar o combate à epidemia. Para além disso, a Medis parece considerar que o tratamento de doentes à margem de uma estrita articulação com o SNS pode impactar negativamente os esforços e o sucesso alcançado até agora pelo sistema de saúde Português.
Não sendo (naturalmente) discutida pelos intervenientes, há uma outra problemática associada à cobertura do tratamento de COVID-19 pelas apólices de seguros de saúde suplementares em Portugal: a introdução de desigualdades no acesso e qualidade deste tratamento, determinadas pela possibilidade de pagar seguros voluntários. Sem entrar numa discussão mais extensa sobre moral hazard, esta cobertura significa que aos doentes com seguro será dada a possibilidade de tratamento por sua iniciativa e nas condições de um hospital privado. E não é claro que se consiga prevenir estas desigualdades de prevalecerem em eventual situação de rotura do SNS e necessidade de utilização da capacidade dos hospitais privados.
Ainda assim, tanto a estratégia Portuguesa como a alocação da maior parte dos recursos encontram-se centradas no SNS. Alguns dirão que eventuais desigualdades geradas no tratamento de COVID-19 no nosso país via seguros de saúde não são fraturantes. Uma realidade muito diferente para outros países. Como país desenvolvido, os Estados Unidos da América são o exemplo mais flagrante de desigualdades no acesso aos cuidados saúde. E se no contexto da pandemia foi aprovada legislação para garantir restrições nos copagamentos e tratamento dos Americanos sem seguro, tal está longe de significar que os grupos mais desfavorecidos beneficiarão de acesso e qualidade de cuidados comparáveis aos da restante população.
A forma desigual como a COVID-19 tem afetado diferentes grupos de cidadãos Americanos tem feito manchetes nos meios de comunicação social, maioritariamente descrita em termos raciais mas em muito associado à situação económica destes grupos. Infelizmente, estas desigualdades extrapolam em muito o acesso aos cuidados de saúde. São o resultado de maior exposição ao risco de infeção – por serem estes grupos a desempenhar grande parte das profissões essenciais, sem a devida proteção; e maior suscetibilidade à doença grave – pela existência de comorbilidades de base com mau prognóstico (essas sim que derivam parcialmente de acesso diferencial a cuidados no passado)**. E o impacto nas desigualdades não ficará por aqui. Estender-se-á aos cuidados de saúde para outras condições que agora são cancelados, adiados ou não procurados (por receio). E também ao tratamento de condições adquiridas durante esta pandemia, por exemplo doença mental. É antecipável que os grupos mais desfavorecidos tenham mais dificuldade em recuperar estes cuidados com um aumento considerável nas disparidades em saúde. Por certo nos Estados Unidos. Mas também em Portugal.
Perante a situação Americana, e apesar das atuais fragilidades do SNS e do crescimento dos seguros de saúde suplementares no nosso país, fica a lembrança aos Portugueses do que significa pertencer a um Estado Social com cobertura universal e cuidados de saúde tendencialmente gratuitos. Ao Estado Português fica a nota para a devida atenção à temática das desigualdades em saúde durante e após esta pandemia. Aliás, a todas as desigualdades.
*A maioria das apólices de seguros de saúde (suplementares) não inclui a cobertura de custos associados a epidemias.
**Para uma reflexão mais detalhada acerca de desigualdades (Norte-Americanas) nesta pandemia recomendo o artigo de Nancy Krieger no The New Yorker.
Francisca Vargas Lopes,
Erasmus Medical Center, Department of Public Health