É curioso como, em poucos dias, a COVID-19 conseguiu alterar o panorama da governação dos hospitais do SNS, que passou da regulamentação e centralização quase totais a um modelo de autonomia dificilmente imaginável no mês anterior.
Quais eram as regras em vigor até janeiro? (refiro-me às normas em vigor em 2019, de acordo com o Decreto-Lei de Execução Orçamental e outros documentos legais): os hospitais EPE (Entidade Pública Empresarial) não podiam assumir compromissos de despesa plurianuais sem autorização, com exceções muito restritivas; não podiam assumir sem autorização compromissos de despesa sem fundos disponíveis (objetivo quase impossível para a maioria deles, submergidos em milhões de euros em dívidas vencidas); não podiam assumir sem autorização investimentos além de determinados valores; não podiam contratar sem autorização exceto em casos muito restritivos. Investimentos e contratações eram permitidos sem autorização prévia caso os hospitais tivessem tido os seus Planos de Atividade e Orçamento (PAO) aprovados, o que, em 2019, apenas tenha sido o caso para pequena minoria.
Resumindo, os Conselhos de Administração tinham uma autonomia extremamente limitada para gerir os seus hospitais, sendo obrigados a solicitar autorizações, geralmente demoradas, para tomar decisões relevantes.
Dois decretos-lei, de 13 e 24 de março de 2020, alteraram esta situação, criando um “regime excecional de autorização de despesa para a resposta à pandemia”, nomeadamente (e resumidamente): a despesa passou a ser autorizada pela DGS ou ACSS, foi flexibilizada a possibilidade de ajuste direto, a compra sem autorização prévia foi permitida desde que abrangida pela compra centralizada, e foi criado um processo de deferimento acelerado de despesas e contratações curtas sujeitas à autorização prévia.
Ao contrário do que era expectável no período pré-COVID, a devolução de competências não se acompanhou de maior responsabilização. Não era, certamente, altura para pensar nisto. Mas quando haja tempo para refletir sobre o bimómio autonomia/responsabilização, esperemos que surja com um olhar diferente.
Para quem pensa apenas na eficiência, a pandemia deixa claro que os cuidados de saúde terão sempre uma dose de ineficiência, por causa da necessidade de manter o acesso inclusive em alturas e locais de baixa procura; é o preço da incerteza e da equidade. Esta incerteza também se reflete nas práticas clínicas, face a um vírus desconhecido, e na incapacidade do setor privado de assumir a sua complementaridade sem apoio do Estado. A pandemia também mostra a falta de alguns dos melhores profissionais de saúde, investigadores ou gestores, perdidos para outros horizontes. Para trazer/reter estes talentos, são necessárias boas condições de trabalho, flexibilidade contratual e espírito de abertura.
Para quem não acredita nem que existam problemas de gestão no SNS, nem que os gestores devam ser responsabilizados, também há possíveis lições: a pandemia demonstra a importância de sistemas de informação interligados e harmonizados, do planeamento dos equipamentos e infraestruturas, da existência de cuidados integrados (entre saúde pública, cuidados de saúde primários e continuados, e hospitais), da criação de redes horizontais entre prestadores geograficamente próximos, ou da compra centralizada ágil.
Neste momento o futuro parece suspenso, aguarda-se com impaciência o seu regresso.
Julian Perelman
Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa