A pandemia COVID-19 motivou a utilização de linguagem bélica em muitos comentários. Não sei se esta é a melhor forma de motivar as pessoas a reagir. Deixo essa discussão para sociólogos e outras áreas disciplinares. O certo é que associada à COVID-19 tem estado uma verdadeira “batalha” de e pelos números.
Juntando a disponibilidade de dados facilmente disponíveis em sites de internet, as muitas pessoas a lidarem com análise quantitativas na sua vida profissional, a ansiedade e/ou a curiosidade provocadas pela COVID-19 e, provavelmente, um maior tempo disponível (basta pensar nas horas de deslocação poupadas pelo confinamento) tem levado à produção de muitos exercícios de previsão sobre os números da pandemia.
As abordagens metodológicas têm sido muitas, diversificadas na “tecnologia” e na forma de utilização dessa tecnologia. Estes exercícios necessitam de números para serem realizados e daí resulta a atenção que é dada à divulgação diária pela Direção Geral de Saúde (DGS) dos valores referentes ao dia anterior por parte de muitas pessoas.
Resulta também uma grande pressão para que haja abertura dos organismos oficiais na cedência dos dados, para escrutínio público, cívico, pela sociedade, da evolução da situação. Se os manuais de saúde pública dizem que, como parece ser o caso da prática corrente em Portugal, deve ser dada informação correta e de forma honesta, desconheço se referem como se deve lidar com uma sociedade civil que tem a capacidade de fazer e divulgar de forma quase instantânea as análises que realiza, que podem ir, ou não, de encontro ao acompanhamento interno que os organismos oficiais realizam.
A abertura para cedência de dados estatísticos será inevitável, mais cedo ou mais tarde, sob pena de não o fazendo se começar a minar a confiança que se pretende que exista na comunicação pública da situação.
Mas essa abertura deverá ser acompanhada, a meu ver, de dois elementos. O primeiro elemento é a indicação clara de que valores divulgados devem ser tomados como provisórios, preliminares e definitivos. O conseguir anunciar todos os dias valores referentes a eventos que sucederam há pouco mais de 12 horas terá imprecisões quase forçosamente (situações que ocorreram e que não foram logo comunicadas, erros de comunicação, duplas contagens, ou, nos dias do digital, erros de introdução de informação, etc.)
É razoável que existam retificações nalguns valores ao fim de alguns dias. A cautela em assinalar qual o grau de confiança em cada valor divulgado devia existir. Esta prática é usual em quem disponibiliza frequentemente informação estatística, bastando utilizar as boas práticas desenvolvidas ao longo de muitos anos de experiência.
O segundo elemento que proponho é novo, mas adaptado aos tempos correntes. Existindo múltiplas formas de trabalhar a informação estatística, surgirá, como tem surgido, uma grande diversidade de projeções e cálculos. Será útil ter uma certificação metodológica, como forma de atribuir credibilidade, ou não, a essas análises. Ter uma check-list rápida de avaliação de análises, na sua parte metodológica não nos resultados, que fossem submetidas via um formulário de internet. Um exemplo de um critério dessa check-list é que nenhuma análise seria dada como válida se a descrição da mesma não permitisse a qualquer pessoa replicar e obter os mesmos resultados com base na informação publicamente disponível.
Esta verificação até poderá ser feita por um conjunto de pessoas que estejam habituadas a fazer revisão científica de artigos e ser feita num contexto não oficial. Há certamente várias formas de organizar um processo rápido e praticamente sem custos. Não é preciso ser a DGS ou o Ministério da Saúde a montar o processo. Poderá ser iniciado por uma instituição ou entidade, pública ou privada, credível, em quem se reconheça idoneidade.
As vantagens imediatas dum processo deste tipo serão retirar da discussão pública as análises metodológicas incorretas e aproveitar boas análises, informativas, recolhidas para consulta num único local. Outras vantagens são criar um espaço claro onde a contribuição da sociedade civil pode confluir e permitir uma comparação fácil entre essas análises.
A principal desvantagem é o custo de montar este sistema. Acredito, contudo, que as vantagens de uma discussão pública mais organizada compensam esses custos. Claro que se poderia preferir não ter discussão pública, embora tenha a sensação de que tal não será evitado em Portugal (e ainda bem!).
Nesta altura, quem persistiu na leitura até este ponto está convencida/o de que nada disto acontecerá. Talvez tenha razão, mas se não for sugerido certamente que não acontecerá.
Resumindo, é desejável que uma maior cedência de informação seja acompanhada dos mecanismos que a levem a ser utilizada da melhor forma para o acompanhamento e compreensão da COVID-19 e da sua evolução. Confiar na sociedade civil é dar-lhe toda a informação disponível, em tempo útil, com a indicação da fiabilidade dessa informação, e exigir que seja feito um uso responsável da mesma. Gerando, se necessário, mecanismos que de forma simples levem a esse uso responsável. Para que a “batalha” dos números melhore o nosso conhecimento e decisões e não seja apenas vozearia pouco útil.
Lisboa, 31 de Março de 2020
Pedro Pita Barros
Professor “BPI | La Caixa” de Economia da Saúde na Nova School of Business and Economics, Universidade Nova de Lisboa