A pandemia contribuiu para uma maior sensibilização para o tópico da saúde mental, evidenciando consideráveis necessidades não satisfeitas da população. A reposta a estas necessidades não passa apenas por melhor capacitar os sistemas de saúde. É necessário fazer da saúde mental um foco de atenção nas escolas, locais de trabalho e sistemas de proteção social. Tal integração de políticas de saúde mental nos vários sectores da sociedade tem sido adotada a diferentes ritmos pelos vários países da OCDE, ainda que lentamente, de uma forma geral. Quanto a Portugal, é urgente que a agenda política nacional vá para além da implementação de reformas nos cuidados de saúde mental e se estenda a dar prioridade ao tópico em políticas públicas de educação, trabalho e de apoio aos mais vulneráveis.
A saúde é um produto complexo de determinantes sociais. Não é possível alcançar a sua promoção efetiva e a prevenção da doença apenas por via de políticas de saúde. É necessário considerá-la no desenho de políticas públicas dos mais variados sectores – da educação ao trabalho, à segurança social, ao urbanismo, entre outros. No entanto, o caminho a percorrer para concretizar o mote da saúde em todas as políticas (Health in All Policies (HiAP)) é ainda longo e sinuoso. Mesmo que a pandemia possa ter contribuído para uma pequena aceleração, estamos ainda longe de ultrapassar os silos setoriais – enraizados nas atuais estruturas de financiamento, que impedem a implementação de políticas públicas verdadeiramente integradas.
Este caminho é ainda mais longo no que toca à saúde mental. A necessidade de um moto específico para a saúde mental justifica-se pela ausência de paridade entre a mesma e a saúde “física”, assim como décadas de estigma e de falta de atenção e investimento no tema. Também aqui, a pandemia parece ter contribuído para um pequeno avanço no caminho a percorrer, trazendo o tópico para discussão a vários níveis da sociedade; e levando os países a tomarem medidas rápidas para aumentar a disponibilidade de cuidados de saúde mental e a implementar mecanismos de proteção a fatores de risco como a insegurança económica (OCDE, 2021). No que esperamos ser já o rescaldo da crise COVID-19, é urgente que a saúde mental não desça de prioridade nas agendas políticas e que se disponibilizem os recursos necessários à modernização e integração dos serviços existentes.
Os enormes custos da doença mental para as sociedades e economias são conhecido. Estima-se que os custos atinjam mais de 4% do produto interno bruto (PIB) dos países da União Europeia, incluindo 1.3% em custos diretos para o sistema de saúde e 1.3% para a segurança social; bem como 1.6% em custos indiretos para o mercado laboral (OCDE, 2018). De notar que as estimativas existentes focam-se usualmente na existência de doença, ignorando os custos de estados intermédios de menor saúde mental1) (aqueles que podendo não resultar num diagnóstico clínico estarão por certo associados a consequências como presenteísmo2) laboral). Problemas de saúde mental estão também associados a consideráveis desigualdades nas nossas sociedades: em Portugal, trabalhadores com estes problemas de saúde ganham apenas 70% do salário que recebem os seus pares em boa saúde mental (OCDEb, 2021).
A dimensão das implicações da saúde mental em sectores da nossa sociedade como o trabalho ou o ensino vem reforçar a importância de que haja um foco na mesma por parte destes setores, e não só do sistema de saúde. É urgente que assim o seja, uma vez que vivemos um momento quase paradoxal de crescimento da carga da doença mental, apesar das melhorias na abordagem terapêutica desde há 60-70 anos e dos níveis de prevalência de doença relativamente estáveis. Um compromisso neste sentido foi adotado pelos países da OCDE – incluindo Portugal, ainda em 2015, na forma de um instrumento legal denominado Recommendation of the Council on Integrated Mental Health, Skills and Work Policy. Esta Recomendação estabelece a base para a melhor integração da saúde mental nas áreas do trabalho, proteção social e educação/juventude, nomeadamente (detalhe apresentado no final do texto3)).:
– A implementação de políticas laborais para a promoção da saúde mental no local de trabalho e no âmbito do retorno ao trabalho após período de ausência (prolongada);
– O aumento da responsividade dos sistemas de proteção social e serviços de emprego a pessoas que vivem com condições de saúde mental;
– A melhoria dos resultados educacionais e transições entre o sistema de ensino e o mercado laboral para os jovens que vivem com condições de saúde mental.
A primeira monitorização desta Recomendação data de 2021 e reporta considerável heterogeneidade no progresso dos vários países OCDE: de países que ainda se encontram a desenvolver a retórica necessária para integração da saúde mental nas políticas dos outros setores, passando por outros países que se encontram já na transição de experiências/programas piloto para a sua implementação em larga escala. Há também variação entre os diferentes setores. Progresso na utilização de estratégias integradas para a melhoria da saúde mental dos jovens foi alcançado em vários países, por via de abordagens focadas na identificação precoce em ambiente escolar e aumento dos serviços de acesso fácil e não-estigmatizante para este grupo etário, entre outros. Por outro lado, os sistemas de proteção social são aqueles em que menos avanços foram registados. Uma particular lacuna foi identificada ao nível da existência limitada de programas de apoio integrado para doença mental leve ou moderada, muito comum por exemplo entre pessoas no desemprego. Também a avaliação do progresso no setor laboral é menos positiva: apesar do aumento da regulação quanto a riscos psicossociais, mantém-se a falta de articulação entre os empregadores, o sistema de saúde (mental) e a proteção social – com particular ausência de apoio à saúde mental para trabalhadores em subsídio de doença, ou situação de incapacidade temporária.
Quanto ao nosso país, o relatório de monitorização da OCDE é omisso quanto a exemplos de integração de política de saúde mental em Portugal; ficando por esclarecer se esta falta de informação se traduz também em falta de progresso no tópico. Depois de anos de pouco avanço na reforma do sistema de saúde mental há muito delineada (Plano 2007-2016), a passagem recente de Programa Nacional para a Saúde Mental a Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental sugere um reforço na importância da temática. Por outro lado, algum progresso é esperado por via do Plano de Recuperação e Resiliência, que inclui um pacote de medidas sobre cuidados de saúde mental no domínio da desinstitucionalização, cuidados na comunidade e integração de vários níveis de cuidados, entre outros (na sua maioria medidas anteriormente delineadas, mas nunca implementadas). No entanto, e reiterando a importância do mote inicial “saúde mental em todas as políticas”, é urgente que o tópico não seja apenas o foco de política de saúde e ganhe também destaque nas agendas políticas de Ministérios como o do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e da Educação. Seguir as diretrizes internacionais e aprender com os sucessos e falhas de outros países será um passo importante nesta direção.
Francisca Vargas Lopes
Doutoranda na Erasmus University Rotterdam, atualmente destacada na OCDE, no Directorate Employment, Labour and Social Affairs, Skills and Employability Division, Mental Health and Disability Team
Notas:
- De acordo com a definição da OMS, saúde mental é o estado de bem-estar em que o indivíduo consegue exercer as suas capacidades, lidar com o stress usual da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera e contribuir par a sua comunidade.
- Prática que consiste em estar presente no local de trabalho mas sem produtividade correspondente.
- Em mais detalhe, a Recomendação estabelece para cada um dos setores do trabalho (A), proteção social (B) e educação/juventude (C)
(A) A implementação de políticas laborais para a promoção da saúde mental no local de trabalho e para o retorno ao trabalho após período de ausência, via
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- Promoção da avaliação do risco psicossocial e prevenção de riscos no local de trabalho; bem como desenvolvimento de estratégias para lidar com o estigma e discriminação (e.g. exemplos na liderança, melhoria das capacidades de gestores de pessoas e representantes dos trabalhadores, treino de pares e promoção ativa da saúde psicossocial no trabalho).
- Aumento do conhecimento quanto à perda de produtividade por condições de saúde mental, desenvolvendo orientações para chefias e pares acerca do seu papel no apoio a trabalhadores nestas condições – por exemplo quanto à necessidade de procurar cuidados adicionais.
- Desenvolvimento de processos de retorno ao trabalho flexíveis e graduais para trabalhadores em subsídio de doença, fazendo as necessárias adaptações do local/ambiente de trabalho e recorrendo à utilização de serviços de aconselhamento com uma forte componente de suporte da saúde mental; incentivo dos empregadores a prevenir a utilização excessiva de subsídio de doença procurando adaptações e soluções que se antecedam ao pedido do mesmo, por via do diálogo entre empregador, empregado, representantes e profissionais de saúde.
(B) A melhoria dos resultados educacionais e transições entre o sistema de ensino e o mercado laboral para os jovens que vivem com condições de saúde mental, através da
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- Monitorização e melhoria do ambiente escolar no que toca à aprendizagem socio-emocional, prevenção de stress mental, bullying e agressão; aumento da atenção e conhecimento do tópico pelos profissionais de educação.
- Articulação entre instituições de ensino e estruturas sociais e cuidados primários e de saúde mental mais precoce e rápida.
- Prevenção ou reversão da saída precoce do sistema de educação por melhor seguimento daqueles em risco de o fazer/que o fazem; e apoio à transição escola-universidade ou escola-trabalho para os estudantes que vivem com problemas de saúde mental.
(C) O aumento da responsividade dos sistemas de proteção social e serviços de emprego a pessoas que vivem com condições de saúde mental pela
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- Redução de pedidos de incapacidade por condições de saúde mental que possam ser prevenidos por via do reconhecimento de capacidade de trabalho reduzida/parcial dos requerentes, incluindo estratégias de identificação precoce e apoio vocacional.
- Investimento na criação de competências sobre saúde mental para os trabalhadores do sistema de proteção social – gestores de caso, assistentes sociais e de apoio vocacional; e disponibilização de ferramentas que permitam às pessoas com condições de saúde mental identificar o apoio que necessitam para retornar ao trabalho.
- Encorajamento da integração do tratamento para a saúde mental na provisão dos serviços de emprego, estimulando a cooperação com o setor da saúde (especialmente cuidados primários e comunitários) e o desenvolvimento de intervenções vocacionais que incluem aconselhamento psicológico também para condições leves a moderadas.
A Recomendação engloba também um conjunto de recomendações para os sistemas de saúde mental, que não são, no entanto, o foco desta peça.