A pandemia enfatizou a necessidade de medidas de saúde pública que garantam a continuidade de cuidados, incluindo estratégias para promover o acesso aos medicamentos [1]. Em maio de 2020 escrevi sobre o acesso aos medicamentos hospitalares nas farmácias comunitárias, em tempos de pandemia, e a forma como o Governo criou enquadramento e deu “Luz Verde” para, a pedido do utente, garantir continuidade terapêutica para o controlo das suas patologias, evitando as deslocações aos hospitais.
Volvidos dois anos, é tempo de pensar as lições aprendidas, nomeadamente o valor gerado por este serviço de proximidade, que resultou do esforço concertado entre os diversos profissionais e parceiros do setor da saúde, em articulação com as farmácias e os hospitais de referência, em prol da pessoa com doença crónica.
No âmbito desta iniciativa, foram realizadas milhares de dispensas de medicamentos em todo o território nacional, através de mais de 2400 farmácias, garantindo a gratuitidade, confidencialidade e liberdade de escolha, bem como o cumprimento das normas de segurança em todo o circuito e o aconselhamento farmacêutico. Um estudo [2] de coorte, antes e depois, envolvendo uma amostra selecionada aleatoriamente de participantes, com 3 meses de seguimento, foi realizado com o objetivo de medir o valor gerado pela intervenção da farmácia comunitária na dispensa de medicamentos hospitalares, avaliando o impacto na vida das pessoas.
A maioria dos participantes do estudo (num total de 603) era constituída por pessoas que viviam com doença (84,6%), sendo os restantes cuidadores. As áreas terapêuticas mais prevalentes foram o VIH e a doença oncológica, abrangendo aproximadamente 25,2% e 20,6% das pessoas, respetivamente.
Os resultados do estudo mostram melhoria na adesão à terapêutica, com aumento estatisticamente significativo do já elevado score médio de 99,2% para 100%, ao fim dos 3 meses de seguimento (escala MAT). A qualidade de vida relacionada com a saúde das pessoas que vivem com doença não sofreu alterações durante o período do estudo (EQ-5D-3L).
Os participantes relataram um aumento significativo dos níveis de satisfação em todas as dimensões avaliadas: disponibilidade do farmacêutico, horário de atendimento, tempo de espera, condições de privacidade e experiência geral. E, não menos importante, 91,0% das pessoas declarou que, numa fase de pós-pandemia, optaria por continuar a levantar os seus medicamentos na farmácia comunitária.
Adicionalmente, a transferência de local de dispensa gerou poupanças anuais que rondam os 260€/pessoa, decorrentes de reduções significativas das despesas de deslocação e redução de absentismo (28% dos participantes referiram faltar pelo menos meio-dia ao trabalho no setting hospitalar, versus 0,5% na farmácia).
Os resultados do estudo evidenciam que a transferência da dispensa destes medicamentos para a farmácia comunitária pode promover melhor acesso, comodidade e conveniência nas deslocações, em conjunto com melhoria na satisfação e resultados em saúde, garantindo a adesão ao tratamento, com poupanças significativas para o cidadão e para a sociedade.
Esta configuração é já uma realidade em muitos países [3-5], constituindo evidência complementar para suporte à decisão em políticas públicas.
A pandemia testou e revelou as fragilidades dos sistemas de saúde, mas fez-nos também repensar o futuro. E este advém da mudança, da transformação, da capacidade de inovação para, em articulação com os diversos interlocutores, sermos capazes de contribuir para ganhos em saúde, fomentando a eficiência do sistema de saúde e centralidade da pessoa.
Inês Teixeira
Centro de Estudos e Avaliação em Saúde, CEFAR/INFOSAÚDE/ANF
[1] Bell JS, Reynolds L, Freeman C, et al. Strategies to promote access to medications during the COVID-19 pandemic. Aust J Gen Pract. 2020;49(8):530-532. PubMed (nih.gov)
[2] Murteira R, Romano S, Teixeira I, et al. Real-world impact of transferring the dispensing of hospital-only medicines to community pharmacies during the COVID-19 pandemic. Value in Health, 2022. https://doi.org/10.1016/j.jval.2022.03.004. ScienceDirect
[3] Jacomet C, Langlois J, Secher S, et al. Pharmacist’s role in HIV care in France. Implication for clinical improvement of people living with HIV worldwide. Pharmacol Res Perspect. 2020;8(5):e00629. doi:10.1002/PRP2.629. PubMed (nih.gov)
[4] Pharmaceutical Society of Australia. Community pharmacy and HIV. 2015. Programs (PSA.org.au)
[5] Vu K, Logan H, Brown E, Oriasel S. Implementing the Safe Handling of Oral Anti-cancer Drugs (OACDs) in Community Pharmacies : A Pan-Canadian Consensus Guideline. Anticancer Drugs. 2017;22–5. Guideline (Cancer Care Ontario.ca)