Como determinamos se um medicamento deve ser comparticipado no SNS ou não? Como sabemos se uma política de saúde é benéfica ou prejudicial para a população? Determinar a relação causa e efeito (causalidade) é fundamental para a tomada de decisões acerca da alocação de recursos e na formulação de políticas no sector da saúde.
Quando o INFARMED toma decisões acerca da comparticipação de novos medicamentos, evidência sobre a efetividade (e custo-efetividade) do tratamento é tipicamente obtida em ensaios clínicos aleatorizados. Nestes estudos, um grupo de indivíduos toma o medicamento em questão, enquanto outro grupo semelhante não toma o medicamento. Uma vez que cada indivíduo é alocado aleatoriamente a um destes grupos, a diferença nos resultados entre os dois grupos corresponde ao efeito do medicamento. Contudo, para muitas decisões, evidência de estudos aleatorizados não é suficiente. Por exemplo, estes estudos podem não incluir todos os comparadores ou resultados relevantes para a tomada de decisão. Noutros casos, como o da avaliação de políticas de saúde, estudos aleatorizados podem não ser exequíveis. Por exemplo, se quiséssemos avaliar o efeito de um subsídio de alimentação a famílias carenciadas na prevenção de obesidade, não seria eticamente possível alocar algumas famílias carenciadas ao subsídio de alimentação e outras não. Neste área, os economistas da saúde tendem a usar métodos quasi-experimentais, que essencialmente tentam replicar o processo de alocação aleatória dos ensaios clínicos mas usando outros tipos de variação exógena no mundo real. Por exemplo, a existência de um gabinete de apoio às candidaturas ao subsídio de alimentação na área de residência poderia determinar a adesão ou não ao programa. Tal variável permitiria alocar, de forma mais ou menos aleatória, cada família carenciada a um grupo que participa no programa de subsídio ou a um grupo semelhante que não participa no programa. Contudo, a disponibilidade de tais variáveis ou outros designs quasi-experimentais tendem a ser relativamente raros na área de saúde, e muitas questões de relevância clínica ou política acabam por ser baseadas em dados observacionais.
Uma das fontes de dados observacionais que tem vindo a receber particular atenção dos decisores clínicos e políticos são os dados de saúde eletrónicos. De facto, a melhoria dos sistemas de informação em saúde e digitalização na prestação de serviços de saúde (e-saúde) veio aumentar exponencialmente a disponibilidade de dados recolhidos eletronicamente sobre os utentes e os cuidados de saúde que recebem. Por exemplo, o registo de saúde electrónico no Serviço Nacional de Saúde recolhe, de forma rotineira, informação acerca das características sociodemográficas e indicadores de saúde dos utentes, bem como análises clínicas, prescrições e relatórios médicos. A recolha destes dados tem como objetivo principal informar a tomada de decisão clínica e administrativa dos prestadores de cuidados de saúde. No entanto, uma das questões que mais se tem vindo a colocar é se podemos usar estes dados de um modo efetivo e robusto para a avaliação de tratamentos ou políticas de saúde.
Uma forma útil de explorar grandes volumes de dados eletrónicos para questões de causalidade envolve definir o estudo aleatorizado-alvo que gostaríamos de poder ter conduzido (mas que não pudemos) para abordar a questão de interesse, e replicar esse estudo usando dados observacionais. A ideia de ‘emulação’ do estudo aleatorizado-alvo (EAA – mais detalhes aqui) é bastante simples e foca-se em torno de recriar cuidadosamente todos os passos (por exemplo, definição dos critérios de elegibilidade e das intervenções a comparar) considerados no design de um ensaio clínico aleatorizado. Ao definir explicitamente o estudo aleatorizado-alvo, este método oferece uma forma robusta, acessível e transparente de explorar dados observacionais para abordar questões de causalidade. Além disso, ao aproximar o design e análise entre estudos aleatorizados e observacionais, a emulação do EAA facilita a interpretação e comunicação dos resultados às várias partes intervenientes no processo de tomada de decisão. Este paradigma tem vindo a ganhar um impulso considerável na área de avaliação de tratamentos e políticas de saúde, e deixo aqui três exemplos recentes que ajudam a ilustrar a sua utilidade.
Numa fase inicial da pandemia da COVID-19, foram propostos vários tratamentos, por exemplo Tocilizumab (medicamento imunossupressor), para diminuir a mortalidade de pessoas em estado crítico infetadas pelo coronavírus. Dada a inexistência de evidência acerca da efetividade deste tratamento, um grupo de investigadores dos EUA[1] replicou um EAA no qual indivíduos admitidos aos cuidados intensivos foram alocados a dois grupos: um grupo recebeu Tocilizumab e o outro não. O estudo emulou o EAA usando dados administrativos de 68 hospitais (Claims data), e conclui que Tocilizumab diminui o risco de mortalidade em pacientes com a COVID-19. Um ano mais tarde (2021), vários ensaios clínicos aleatorizados confirmaram os resultados do EAA. Este caso foi bastante mediático, porque o decisor político decidiu esperar pelos resultados dos ensaios clínicos, e consequentemente todos os benefícios associados ao medicamento Tocilizumab durante o primeiro ano da pandemia foram desperdiçados.
Existe ampla evidência de que o volume de cirurgias efetuadas está negativamente associado com a taxa de mortalidade pós-operatória. Contudo, associação não significa causalidade e estas questões raramente são analisadas em estudos aleatorizados. Um estudo recente conduziu um EAA para avaliar o efeito do volume de cirurgias na taxa de mortalidade hospitalar[2]. O EAA visou comparar grupos de indivíduos, semelhantes em termos de características e prognóstico clínico, mas alocados a hospitais e cirurgiões com diferentes volumes de cirurgias. O EAA foi emulado usando dados eletrónicos de saúde do programa Medicare nos EUA (60 milhões de utentes). O estudo concluiu que a experiência do cirurgião tem um efeito causal na taxa de mortalidade pós-operatório, mas o efeito parece ser mais modesto do que apontado por outros estudos observacionais.
A emulação do EAA pode também ser baseada em dados eletrónicos mais agregados. Por exemplo, o John Hopkins Coronavirus Resource Centre recolheu dados acerca da COVID-19 e das políticas de isolamento e distanciamento social tomadas durante a pandemia em cada estado dos EUA. Usando estes dados, podemos formular vários EAAs para avaliar o impacto de diferentes políticas de saúde pública. Foi isto que fez um estudo liderado por investigadores da Universidade de John Hopkins[3], em que se comparou dois grupos de estados: um grupo que adotou uma política de isolamento (stay-at-home) e outro grupo não. A emulação do EEA não foi bem-sucedida, dadas algumas limitações dos dados para ajustar o timing preciso dos efeitos da política de isolamento e potenciais efeitos de contágio e transbordamento (spillover effects).
Na ausência de estudos aleatorizados ou designs quasi-experimentais, a emulação do EEA oferece um método complementar para a avaliação de tratamentos ou políticas de saúde com base em dados recolhidos de forma rotineira no sistema nacional de saúde. Nem sempre será possível emular o EAA com sucesso, como ilustrado no último exemplo que descrevi acima. Contudo, os princípios por detrás da emulação de estudos aleatorizados podem ser bastante úteis, pois permitem aos investigadores considerar cuidadosamente cada elemento do design do estudo e minimizar contrassensos comuns na análise de dados observacionais. A execução do EAA permite a identificação de potenciais limitações dos dados observacionais e o impacto destas na tomada de decisão.
Manuel Gomes
Associate Professor, Department of Applied Health Research, University College London
[1] https://jamanetwork.com/journals/jamainternalmedicine/fullarticle/2772185
[2] https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2789911
[3] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7668737/