A transição digital na saúde faz ferver qualquer coisa dentro de nós – para alguns a promessa consagrada do progresso ao serviço da saúde humana, para outros a possibilidade de projetar a sustentabilidade económico-financeira de um sector de atividade altamente pressionado do ponto de vista do custo, entre tantas outras aspirações que refletem os nossos anseios e esperanças perante a tecnologia e o papel que esta pode desempenhar nas nossas vidas.
Certo é que a transição digital na saúde teve, ao longo dos últimos dois anos e muito enquanto tópico lateral da pandemia da COVID-19, um enfoque mediático relevante. Quer em número de eventos organizados quer no que respeita à difusão de ferramentas várias baseadas em chavões tais como “big data”, “inteligência artificial”, ou “algoritmos” – quem é que em Portugal já não ouviu falar de algoritmos, apesar de raramente ter uma definição precisa deste conceito? – é publicitada como uma tendência que veio para ficar. Podemos, aliás, colocar uma cifra no valor desta transição: no Plano de Recuperação e Resiliência português o Governo propôs-se investir um total de 1.383 milhões de Euro no Serviço Nacional de Saúde (SNS), dos quais 345 milhões de Euros foram explicitamente alocados a iniciativas digitais[1].
Na saúde como em tantos outros âmbitos da nossa vida comum parece ter-se construído a ideia de que a transição digital é essencialmente uma aluvião tecnológica que visa automatizar e substituir os seres humanos por processos robotizados mais ou menos amorais de decisão. O que esta descrição não espelha é o facto de a transição digital depender, em larga medida, dos processos já embebidos na cultura organizacional das diferentes instituições que têm um papel na saúde.
E é aqui que a expetativa esbarra na realidade; é que se, por um lado, podemos ter casos de uso bem-sucedidos nos quais se promete, por exemplo, o rastreio dermatológico à distância, por outro somos confrontados com um sistema de saúde (tanto público como privado) ainda em larga medida baseado no papel. Não estamos a falar sequer do parque informático envelhecido ou dos programas hospitalares não-interoperáveis e não-integráveis, em si barreiras à criação de uma efetiva transformação digital do sector. Estamos, sim, a falar do facto de ainda se fazer o registo dos pacientes em internamento num livro à porta da enfermaria, da repetição de exames porque o suporte de base ainda é o papel, ou do preenchimento múltiplo dos mesmos dados para aceder aos mesmos serviços vezes e vezes sem conta, frequentemente dentro da mesma instituição.
Estes problemas não são de agora; mas, precisamente pela sua longevidade, devem preocupar-nos. A transição digital não vai liquidar uma cultura obsoleta e substituí-la por outra, mais dinâmica e ágil, por si própria. Essa oportunidade esgotar-se-á no momento em que se perder aquela de repensar como organizar a saúde em Portugal, designadamente no que concerne a reconfiguração de processos e procedimentos de modo a conseguirmos gerar no SNS a capacidade de este não apenas recuperar do choque brutal da COVID-19, mas também de criarmos o SNS como queremos que ele seja.
Diogo Nogueira Leite
Economista e doutorando em Ciência de Dados de Saúde
Nota: Este artigo reflete somente a perspetiva do autor e só a ele o vincula, não refletindo necessariamente as visões de quaisquer instituições com as quais colabore.
[1] Plano de Recuperação e Resiliência entregue a 22 de abril de 2021: https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/documento?i=recuperar-portugal-construindo-o-futuro-plano-de-recuperacao-e-resiliencia