A forma como olhamos para o mundo digital transformou-se completamente com a pandemia da Covid-19. De um dia para o outro o uso da internet deixou de ser uma escolha e passou a ser a única opção para muitas situações do dia a dia. Por exemplo, o isolamento social forçado levou a que alguns serviços públicos estivessem apenas acessíveis online. O teletrabalho ganhou uma dimensão como nunca antes vista. Estudar a partir de casa passou a ser regra a todos os níveis de ensino. O acesso às compras online tornou-se para muitos, principalmente para a população mais vulnerável, uma opção forcada. E a lista continua…
Esta transformação digital veio expor um dos maiores desafios desta década – a exclusão digital. Por exemplo, mais de 20% da população Portuguesa encontra-se excluída do mundo digital. O índice de acesso digital, medido pela União Internacional de Telecomunicações, em Portugal é de 0.65, sendo que este indicador varia entre 0 (sem acesso digital) e 1 (melhor acesso possível), e inclui cinco componentes: o uso da internet, infraestrutura de rede, qualidade de acesso, custos e competências digitais. Isto coloca Portugal muito abaixo dos países da Europa do Norte/Central e atrás de todos os países do Sul da Europa.
As razões para a exclusão digital prendem-se principalmente com três factores:
- a falta de acesso a internet. Isto reflecte maioritariamente as desigualdades socioeconómicas e a variação da qualidade das infraestruturas a nível regional;
- a falta de competências tecnológicas que impedem o uso das tecnologias, como o telemóvel ou o computador. Este tipo de exclusão afeta desproporcionalmente a população idosa, aqueles socialmente mais isolados ou vulneráveis e as mulheres;
- a falta de competências digitais que permitam tirar a máxima utilidade do uso das plataformas digitais, a qual esta também fortemente associada com os fatores mencionados acima, assim como o nível de escolaridade.
No que diz respeito à saúde (e à economia da saúde), a pandemia da Covid-19 veio alterar completamente a realidade dos cuidados de saúde, principalmente dos cuidados primários. O distanciamento social e o sobrecarregamento do serviço nacional de saúde impostos pela pandemia levou a uma transição das consultas presenciais para teleconsultas, e um aumento do uso de outras ferramentas digitais. Se por um lado a digitalização dos serviços de saúde poderá permitir uma maior eficiência do sistema e facilitar a prestação de cuidados de saúde, por outro lado, o impacto desta na saúde da população é pouco claro. Por exemplo, será que as teleconsultas oferecem a mesma efetividade e qualidade dos cuidados primários comparando com as consultas presenciais?
Um outro aspecto particularmente preocupante da intensificação da digitalização dos serviços de saúde é a possibilidade de a exclusão digital exacerbar as desigualdades na saúde. Na realidade, os segmentos da população que tem uma maior probabilidade de serem afetados pela exclusão digital, tem também um maior risco de problemas de saúde, nomeadamente a população idosa, mais desfavorecida, socialmente isolada e com menor nível de escolaridade. Isto é particularmente preocupante porque a Covid-19 tem afetado a população de forma desigual, verificando se uma maior incidência nestes mesmos grupos da população. Adicionalmente, estes indivíduos são também aqueles a quem o autoisolamento foi particularmente recomendado, e que na prática mais precisariam das ferramentas digitais, por exemplo, para procurar cuidados de saúde mental.
Neste contexto, estratégias no sentido de aumentar a inclusão digital podem ajudar a melhorar o acesso a cuidados de saúde primários, e por sua vez a reduzir as desigualdades na saúde. Para alem de estratégias nacionais direcionadas ao aumento do acesso e da qualidade da internet e formação digital, destaco duas áreas que merecem especial atenção na área da saúde. A curto prazo, a prioridade deverá centrar-se num conjunto de medidas que aliviem o impacto de uma maior digitalização dos serviços de saúde nos segmentos mais vulneráveis da população. Estes poderão incluir a disponibilização de linhas gratuitas de apoio a saúde, ou acesso gratuito (sem custos de dados) a websites relacionados com serviços de saúde, como por exemplo o portal SNS24.
A longo prazo, o sistema de saúde pode (e deve) adotar um papel mais cativo no apoio a população excluída do mundo digital. Por exemplo, através de programas de formação dos profissionais de saúde de modo a integrarem e apoiarem de forma mais efetiva os pacientes no uso de serviços de saúde digitais. Outro exemplo seria incluir a ‘prescrição’ de programas digitais no seio da comunidade que complementem os cuidados primários (em linha com o modelo de prescrição social popular em alguns sistemas de saúde Europeus), por exemplo, sessões de apoio ao acesso e uso de serviços de saúde digitais. Estas medidas tendem a ter um maior impacto quando tomadas em conjunto com estratégias de combate a exclusão social levadas a cabo pelo sistema social e governos locais.
Manuel Gomes
University College London, Reino Unido