Os cuidados de saúde primários (CSP) assumem-se como o pilar do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A existência de um SNS saudável foi determinante para assegurar uma resposta eficaz, com a simbiose de uma ação estruturada e comunicação ágil, ao nível dos vários níveis de cuidados e estruturas organizacionais. A pandemia por Covid-19 confirmou a relevância da proximidade, onde uma forte rede de CSP tem sido o rosto (in)visível do sistema de saúde. A maioria dos infetados não precisa de internamento hospitalar, sendo que cerca de 97% foram acompanhados pelos CSP em termos domiciliários. Desta forma foi possível atenuar os danos da epidemia, sendo o recurso aos hospitais apenas assumido em caso de necessidade. Apesar duma visão hospitalocêntrica numa fase preliminar, apenas 5% dos casos foram intervencionados em contexto hospitalar, cerca de metade da expectativa inicial.
Face à coexistência de modelos organizacionais distintos, é de enaltecer o mérito para que num curto espaço de tempo tenha sido possível a reinvenção dos CSP, com reorganização de recursos humanos e reestruturação do ponto de vista clínico face às normas emanadas pela DGS, bem como redefinição dos próprios espaços físicos entre unidades próximas ou subunidades para equipas espelho. Sem dúvida que a necessidade faz o engenho. Um dos ganhos colaterais desta pandemia culminou na aceleração do processo de digitalização da saúde, consubstanciando-se na forma como médicos e enfermeiros passaram a comunicar diariamente, através de telefone e mensagens, com os doentes.
No reverso da medalha, a premência de orientação para doentes Covid-19 relegou para segundo plano os demais doentes, onde a atividade assistencial dos CSP padeceu de uma drástica redução. No primeiro semestre, o número de consultas médicas diminuiu cerca de 1 milhão segundo o Ministério da Saúde, ou 3 milhões conforme a Ordem dos Médicos, face ao período homólogo. O diferencial advém de considerar, ou não, as consultas à distância. No cômputo global, as consultas médicas presenciais diminuíram 36% e, as consultas não presenciais aumentarem 63%, conquistando assim um novo posicionamento. Os gráficos abaixo (informaçao do portal da transparência do SNS) são elucidativos da evolução do triénio.
Nesta fase, parece ser expectável que tenhamos de conviver com esta pandemia por algum tempo. Mas, persistindo as outras patologias, torna-se imperativo passar de serviços mínimos para o business as usual dos CSP. Face ao enquadramento atual atrás exposto, importa relançar as sementes do futuro de forma clara para inverter a situação. O eco dos utentes é muitas vezes de incompreensão face ao afastamento do médico de família. Entendo que a comunicação social não tem o dado o devido protagonismo ao papel dos CSP. A agravar a situação, os idosos e pessoas pertencentes a grupos em condições socioeconómicas mais desfavorecidas confrontam-se com uma dura realidade: avanços tecnológicos por um lado, e infoexclusão por outro, onde o remédio parece ser insistir, seja para consultas ou pedidos de prescrição, e quando a alternativa se apresenta sob a forma de correio eletrónico maiores são as assimetrias. A retoma gradual da atividade presencial surge também como um anseio dos profissionais de saúde, como extensão da aprendizagem para que foram formados, e ressalvando que a gestão de cerca de um milhão de doentes crónicos não está a ter espaço para a devida atenção, o que pode colocar em causa os bons resultados alcançados nos últimos anos, para além do diagnóstico precoce de doentes com cancro. De facto, o impacto desta suspensão é incalculável nesta fase. As ADC (áreas dedicadas Covid-19) deverão acompanhar a evolução epidemiológica do país, e concretamente das regiões onde se inserem de forma a que os médicos de família não prestem cuidados excessivos a quem está bem, em detrimento dos restantes, como tem sido veiculado. A resposta deverá ser flexível e, mais do que despachos em sentido único, as condições deverão ser atempadamente concebidas num quadro integrado com todas as instituições do SNS.
O que aprendemos para o futuro? Em primeiro lugar, que a cooperação entre diferentes unidades e níveis de cuidados de saúde é uma solução possível de almejar em prol do bem comum. Segundo, a pandemia não deve ser uma oportunidade perdida para repensar a reforma dos CSP, de forma a torná-los mais resilientes a situações de crise. Nesta vertente, as Unidades de Saúde Familiar (USF) merecem ganhar um novo fôlego, por um lado com transição para modelos organizativos com incentivos baseados na performance, dando primazia à eficiência, e por outro lado a dicotomia do privado versus público poderia vir a ganhar forma com as USFs do modelo C, ainda não implementadas, mas preconizadas no início da reforma. Terceiro, perceber quais das transformações alicerçadas na urgência se podem consolidar de forma permanente, com vista à otimização de recursos e cuidados, simplificação de procedimentos, valorização da troca de experiências e maximização do benefício da transformação digital. Por fim, assegurar que seja a evidência científica e o contributo dos profissionais de saúde e utentes a nortear a tríade de inovação, flexibilidade e equidade no acesso aos cuidados de saúde. A expectativa é grande, uma vez que em períodos bélicos acaba por ocorrer um avanço exponencial de conhecimento e tecnologia, à semelhança do que diariamente temos vindo a ser confrontados. No geral, importa, pois, adotar uma atitude proativa capaz de estar à altura dos novos desafios.
Rita Bastião
Faculdade de Economia da Universidade do Porto