No primeiro de dois textos sobre intervenções de política pública para atenuar ou reverter o aumento dos tempos de espera causado pela pandemia e pela interrupção da actividade assistencial não urgente entre Março e Maio no SNS, ocupei-me particularmente do lado da procura. Terminei-o dizendo que não é expectável que o modesto efeito da livre escolha seja amplificado pelo lado da oferta, se os incentivos financeiros à aceitação de consultas além do valor contratado não forem suficientemente fortes. Hoje, olho para o lado da oferta com mais atenção e começo por notar que há políticas que apontam mais directamente aos tempos de espera.
No SNS, os hospitais têm incentivos financeiros a manter os tempos de espera dos doentes nas suas listas para consultas e cirurgias abaixo de valores predeterminados, os Tempos Máximos de Resposta Garantidos (TMRG). Se, por um lado, é razoável que ocorra uma renegociação dos esquemas de incentivos ligados aos TMRG em resultado do aumento inesperado da procura, por outro, ela não deve ser tal que os incentivos se tornem lânguidos, porque, conquanto possam ser contornados, alguma eficácia têm. Não é grande novidade para os economistas da saúde que este mecanismo tal como está desenhado exerce pressão sobre as esperas mais longas, não sobre toda a distribuição de tempos de espera. É incentivado que estes fiquem abaixo do limiar, não que todos sejam reduzidos. Tal como disse no primeiro texto acerca do efeito redistribuidor da livre escolha, isto não é indesejável se a nossa preocupação for a espera extrema.
Estes limiares e a sua tradução orçamental relacionam-se com a livre escolha interessante e nefastamente. O efeito da livre escolha pode ser limitado, mas a sua presença gera um incentivo perverso. Quando os doentes podem escolher o hospital no qual pretendem ser tratados, a procura por cuidados de saúde torna-se mais sensível aos tempos de espera, porque estes passam, pelo menos para alguns doentes, a ser um critério de escolha entre hospitais do SNS — com efeito, os tempos de espera são apresentados como um dos critérios que devem nortear a escolha no âmbito do sistema de Livre Acesso e Circulação (LAC). Neste contexto, do ponto de vista do hospital, aumentos da capacidade tornam-se uma ferramenta menos eficaz para reduzir os tempos de espera, atingir o limiar contratado e conquistar o bónus orçamental. A redução dos tempos de espera torna o hospital mais atractivo e pode, por isso, implicar um aumento da procura. Este, por sua vez, contribui para o aumento dos tempos de espera e dificulta a obtenção do bónus. Noutras palavras, na presença de livre escolha e de tempos de espera-alvo e na ausência de um acréscimo no pagamento, o incentivo a aumentos unilaterais da actividade hospitalar é menor.
Aqui chegados, regressamos ao início. Pela impossibilidade de reorganizar mecanismos institucionais que geram incentivos contrastantes rapidamente, talvez não possamos, no curto prazo, fazer muito mais do que financiar expansões da actividade. O regime excecional de incentivos à recuperação da atividade assistencial não realizada por força da situação epidemiológica, publicado no dia 14 deste mês em Diário da República, vai neste sentido. É uma intervenção incommumente simples, que aumenta o limite máximo do valor pago às equipas de profissionais de saúde por produção adicional de primeiras consultas e cirurgias. Ocorrem-me duas questões imediatas sobre o alcance desta medida. Em primeiro lugar, ainda que seja um activo mais líquido do que reconhecimento ou gratidão, será o aumento do pagamento suficiente? E, em segundo, quão desvirtuada pode ser esta intervenção durante a sua aplicação prática?
O aumento não é negligenciável. O valor máximo passa de entre 35% e 55% de um valor monetário predefinido para 95% no caso de primeiras consultas e 75% no caso das cirurgias. Falamos, no entanto, de valores máximos, dependendo dos conselhos de administração das instituições hospitalares a definição da percentagem efectivamente paga. Isto relaciona-se com as duas questões que coloquei. Nada surpreendentemente, se as administrações reflectirem o aumento (i.e., não o desvirtuarem sobremaneira), é mais provável que seja suficiente para induzir as horas de trabalho extras por profissionais de saúde desgastados. É possível que, à medida que o desgaste das semanas de trabalho durante a pandemia se acumula, só um pagamento suficientemente alto consiga induzir o esforço extra.
A segunda questão é sobre o desenho da medida. Tal como afirmei, o facto de se tratar de um valor máximo permite um certo grau de discricionariedade na aplicação, podendo o aumento do pagamento auferido pelos profissionais ficar aquém do pretendido pelo legislador. Todavia, há aspectos positivos. O princípio da intervenção é simples — pagar mais por produção extra; o objecto razoavelmente claro, com distinções relevantes — atividade assistencial não realizada por força da pandemia de COVID-19 (…) em especial aquela(s) em que se verifique maior volume de doentes em lista de espera e maior grau de incumprimento dos TMRG; e acautela a procura por cuidados de saúde contemporânea — a actividade adicional deve ser realizada preferencialmente, fora do horário de trabalho das equipas, nomeadamente aos fins de semana (o que não é novidade na contratação de produção hospitalar adicional).
Talvez esta intervenção não ande muito longe do melhor que podemos por agora fazer, contanto que o acompanhamento da implementação seja adequado — e, sobre isto, o leitor é livre para escolher sorrir cumplicemente.
Luís Sá
Departamento de Economia / Núcleo de Investigação em Políticas Económicas (NIPE)
Escola de Economia e Gestão, Universidade do Minho