Tem sido genericamente aceite que a mortalidade é o indicador mais relevante para analisar o impacto clínico da Covid-19. Nesta altura, em que o sucesso no combate à doença é utilizado como instrumento de política económica, é importante termos um indicador que não depende da estratégia de realização de testes implementada em cada país. Acresce que tendemos a acreditar que, em qualquer lugar, será mais fácil não contabilizar todos os casos de Covid-19 do que todas as mortes por Covid-19.
Em abril já se discutia a mortalidade excessiva, aquela não atribuída diretamente à Covid-19 mas que se deverá a impactos indireto da doença. Atualmente temos mais dados para analisar este tema e conseguimos até tentar realizar análises mais finas. Tentamos… porque os dados disponibilizados são limitados e nem sempre comparáveis com dados de anos anteriores. De facto, os óbitos diários por Covid-19 são reportados por década de vida (de 0 a 9 anos, de 10 a 19, etc.) mas os óbitos diários por todas as causas são apresentados considerando o primeiro ano, os seguintes quatro, e cada decénio subsequente (até 1 ano, de 1 a 4 anos, de 5 a 14, etc.). Faz realmente falta uma mudança cultural relativamente à disponibilização de dados à comunidade!
Os dados de mortalidade geral permitem-nos comparar os óbitos por faixa etária dos anos 2014 a 2019 com os verificados em 2020. Considerando a primeira metade de cada ano (mais concretamente os primeiros 183 dias), as diferenças são irrelevantes nas faixas etárias até aos 34 anos; contraditórias até aos 84 anos (por exemplo, dos 65 aos 74 anos houve mais 429 mortes, mas dos 75 aos 84 houve menos 362 mortes); e parecem realmente significativas na população com pelo menos 85 anos. Nesta última faixa etária ocorreram mais 2.680 óbitos, o que representa um acréscimo de cerca de 11% em relação à média de 2014-2019.
Tendo em consideração que o acréscimo de óbitos na primeira metade de 2020 é de 2.725 casos, é natural concluir-se que é preciso uma redobrada atenção nos cuidados prestados a esta faixa da população. Acresce que esta conclusão parece ser válida se considerarmos quer a mortalidade direta quer a mortalidade indireta. De facto, além de dois terços dos óbitos por Covid-19 ocorrerem na população com 80 ou mais anos, é também nesta faixa etária que ocorreu a quase totalidade dos óbitos por mortalidade indireta.
Finalmente, é importante que a análise dos dados de mortalidade efetivamente verificada não conduza à conclusão que todo o esforço realizado pela sociedade, pelo Estado e pelo Serviço Nacional de Saúde se traduz “apenas” na diminuição da mortalidade na faixa etária mais elevada. Não sabemos ainda, se é que alguma vez saberemos, qual seria o acréscimo de óbitos em toda a população se outra política tivesse sido implementada.
Luís Silva Miguel
CEMBE, Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência