
Na semana em que se criticou o “açambarcamento” pelas autoridades dos EUA do antiviral Remdesivir, usado para tratar casos agudos da Covid-19, proponho uma reflexão sobre a importância da solidariedade mundial e dentro das comunidades, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento e administração de vacinas contra o SARS-CoV-2 (quando estas estiverem disponíveis).
Comecemos pela perspetiva mundial da solidariedade entre países.
O caso do Remdesivir não foi, infelizmente, a primeira demonstração de competição abusiva na aquisição de meios para combater a pandemia. Recordemos no início do surto a corrida para a obtenção de ventiladores, desinfetantes ou equipamentos de proteção individual. No caso de uma vacina (ou um antivírico) deparamo-nos ainda com um processo de desenvolvimento complexo e moroso. Mas a vacina tem se tornado um bem cada vez mais precioso à medida que aumenta a evidência da fraca imunidade de grupo alcançada na ausência desta. Ontem (6 de junho), a Organização Mundial de Saúde (OMS) atualizou a lista para 19 vacinas candidatas em ensaios clínicos e 130 em fase de avaliação pré-clínica. Ao todo existem mais de 145 vacinas a ser investigadas em tempo recorde por todo o mundo.
Ainda a alguns meses de ter uma vacina que proteja a população, no melhor dos cenários, não devemos deixar para esse feliz dia o debate público sobre as estratégias para: prevenir a apropriação da produção da futura vacina, definir a prioridade a ser dada na sua distribuição e garantir o acesso global à mesma. O debate sobre a produção e partilha de uma futura vacina tem evoluído nos últimos meses perante uma desunião internacional exposta pela pandemia. “Precisamos de solidariedade global para garantir que todas as pessoas, em todos os lugares, tenham acesso” foi o apelo do Secretario Geral das Nações Unidas no Global Vaccine Summit, em Junho.
Mas onde ficou a solidariedade?
Depois de unir o mundo no confinamento, a coordenação entre países é necessária e urgente para alcançar uma vacina, apelidada de “bem público” pelos líderes mundiais da Europa à China. Algumas medidas já foram tomadas com dois objetivos complementares: o de acelerar e apoiar os esforços dos cientistas na investigação; e o de garantir o acesso global a vacinas seguras. Eis algumas alianças internacionais [1] e verbas disponibilizadas:
- Assistimos ao lançamento em maio de uma ação global “Unidos pelo nosso Futuro” para o acesso universal à vacinação, tratamento e testes de coronavírus a preços acessíveis, sob o patrocínio da presidente da Comissão Europeia, e para a qual diversas entidades portuguesas também contribuíram. Esta ação culminou a 27 de junho com uma maratona de angariação de fundos com diversos discursos e concertos transmitidos em direto pelas televisões de todo o mundo. Na totalidade foram angariados cerca de 16 mil milhões de euros. O destino destas doações pode ser consultado aqui.
- A OMS lançou em abril o Access To Covid-19 Tools Accelerator, uma colaboração global para acelerar o desenvolvimento, produção e acesso equitativo a novas vacinas, diagnósticos e terapêuticas para combater a COVID-19. Esta mobilização de recursos por meio de compromissos internacionais entre países, organizações globais de saúde, empresas, e outros doadores não é completamente uma novidade neste contexto. Experiencias anteriores, como a do Advance Market Commitment em 2009, conseguiram compromissos de fornecimento a um preço máximo por dose, de uma parte da procura anual prevista da vacina pneumocócica em países em desenvolvimento.
- Em junho, o bloco de países composto pela Alemanha, França, Itália e Países Baixos arrancaram com a assinatura com potenciais criadores e fabricantes de uma vacina de um acordo prévio de aquisição . O primeiro contrato com a empresa farmacêutica AstraZeneca assegura a aquisição de até 400 milhões de doses de uma vacina atualmente em desenvolvimento em conjunto com a Universidade de Oxford. Esperemos que a ação coordenada destes estados membros crie valor agregado para todos os cidadãos da UE.
Se estas medidas lhe parecerem insuficientes, especialmente quando se trata de garantir o acesso aos países e populações mais vulneráveis, recomendo a leitura da historia da criação da vacina para a Ébola, que pode oferecer pistas importantes para o debate em momentos de descrença.
Do ponto de vista das comunidades locais o desafio é o da adoção.
Esta pandemia foi para muitos de nós um “test drive” do que seria o mundo sem vacinação. Tomar uma vacina pode ser visto em si como um ato solidário, que tem sofrido de uma certa politização com a emergência de campanhas anti vacinação. Para o vírus SARS-CoV-2 são essenciais programas de vacinação em larga escala para obter imunidade de grupo.
E se quando houver uma vacina, alguns grupos hesitarem ou recusarem vacinar-se?
Esta foi a pergunta que lançou um grupo de investigadores, em coautoria com investigadores da Nova SBE, num inquérito a uma amostra representativa da população europeia. A primeira vaga do estudo para compreender o que leva a população a estar mais (ou menos) disponível para tomar uma futura vacina encontrou diferenças demográficas e entre os países europeus (Dinamarca, França, Alemanha, Itália, Portugal, Países Baixos e Reino Unido). Os investigadores apuraram que 74% dos inquiridos estão disponíveis para a toma da futura vacina, este valor varia entre 62% em França e 80% na Dinamarca. Esta taxa é mais elevada na população masculina em todos os países. Em Portugal, 21% dos inquiridos hesitaria na tomada da vacina e 5% não a tomaria de todo. Estes valores são consideravelmente elevados num pais em que cobertura de vacinação é habitualmente alta, cerca dos 97%. A principal razão apontada para a hesitação é o receio de potenciais efeitos secundários. Este revela-se assim mais um desafio a ter em conta num incerto “futuro com vacina para o SARS-CoV-2″, acrescentando à preocupação atual, como alerta a OMS, com a continuidade dos planos de vacinação já existentes para proteger as comunidades de outros surtos e os serviços de saúde de picos de utilização.
Porque nesta situação só estaremos seguros se os nossos vizinhos e o resto do mundo estiverem seguros.
Joana Pestana
Nova School of Business and Economics
[1] Para além da aliança internacional para a vacinação (GAVI).