
É possível, com base em dados públicos, termos uma boa imagem das contas do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A Figura 1 indica aquilo que se entende por “suborçamentação”: desde 2010, nunca o orçamento inicial foi suficiente para as despesas.

Como assumir uma despesa não orçamentada? A resposta, intuitiva, é a acumulação de dívida, em particular nos hospitais (61% da despesa total do SNS em 2019). A Figura 2 ilustra os níveis muito elevados de dívida vencida e pagamentos em atraso. No entanto, a situação não foi pior por causa das injeções financeiras regulares. Por exemplo, o endividamento hoje é o mais baixo dos últimos anos; ora, foi injetado desde janeiro 2019 um valor ligeiramente superior a 1.200M[1] milhões de euros. Assim, o SNS está suborçamentado, mas não subfinanciado.
Como já foi repetido até exaustão, este funcionamento é péssimo para a eficiência dos hospitais, porque o endividamento impede assumir compromissos de longo prazo, mais vantajosos, deteriora a capacidade negocial com os fornecedores, enquanto as injeções garantidas eliminam qualquer incentivo à racionalidade. Por isso, interessa mais analisar a “geração de dívida”, cujos valores mensais ascenderam a 74M em 2017, e a 70M em 2018 e 2019.
O ano 2020 apresentava-se melhor. O orçamento inicial era superior a 11.000M, ou seja, 5% superior à despesa efetivamente realizada em 2019. Ora, ao fim de 5 meses (valores de maio), observamos um aumento da despesa de 9,2% em comparação com maio 2019, sobre o qual ainda tenho apenas meras hipóteses:

– Aumento de 9,2% das despesas com pessoal. Efeito da contratação de 2.550 profissionais desde o início do ano, e da recuperação do valor das horas extraordinárias;
– Aumento de 14,9% das despesas com aquisição de bens. Efeito em boa parte devido aos novos medicamentos para o cancro[2], e dispositivos/consumíveis para fazer face à pandemia;
– Aumento de 11,3% das despesas com medicamentos vendidos em farmácias. Efeito em boa parte devido aos novos antidiabéticos e anticoagulantes;
– Duplicação dos investimentos, de 29,8 para 91,8M de euros. Sem dúvida, efeito pandemia.
Este aumento poderá ser colmatado com o orçamento suplementar. Se se confirmar o aumento de 9,2% até fim do ano, a despesa chegará a um valor de 11.666M, correspondendo a uma dívida de 441M em relação ao orçamento inicial. O orçamento suplementar, de 504M, poderá, portanto, ser suficiente para fazer face às necessidades.
Mas este aumento da despesa, ao contrário do que aconteceu em 2019, foi acompanhado por uma quebra abrupta da produção (Tabela 1). Se quisermos garantir acesso e a qualidade aceitáveis, em condições de pandemia, qual a despesa que se deverá assumir, em contratações, horas extraordinárias, vales-cirurgias e investimentos? Aguardam-se estas contas!
Tabela 1. Evolução da atividade assistencial.
Abril 2019 | Abril 2020 | Variação (%) | |
Consultas CSP | 10.568.626 | 10.109.782 | -458.844 (-4,3%) |
Consultas externas | 4.209.732 | 3.669.528 | -540.204 (-12,3%) |
Internamentos | 751.003 | 754.102 | +3.099 (+0,41%) |
Urgências | 2.103.880 | 1.667.366 | -436.514 (-20,7%) |
Cirurgias | 198.296 | 149.563 | -48.733 (-24,6%) |
Julian Perelman
Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa
P.S. Hoje quando olho as nuvens, só vejo nuvens. É por ter trabalhado dois anos nas finanças?
[1] M=milhões
[2] https://www.infarmed.pt/web/infarmed/entidades/medicamentos-uso-humano/monitorizacao-mercado/relatorios