Todos nascemos com um determinado stock de saúde. Todos morremos quando se esgota o nosso stock de saúde. Tudo o que nasce morre, quanto a isto não há dúvidas. O que a maioria de nós deseja, quer para nós próprios, quer para todos aqueles de que gostamos, é que o número de dias entre a data do nosso nascimento e a data da nossa morte, seja o maior possível. E que consigamos viver todos esses dias, transformados em dezenas de anos, com a melhor saúde possível e tirando o maior partido da vida. A Covid-19 veio transformar esta situação e acelerar a morte de muitas pessoas com mais de 65 anos de idade. E isto deve envergonhar-nos a todos. Na semana em que passou a ser possível aos idosos que estão nos lares terem visitas dos familiares, se os lares assim o decidirem, não poderia deixar de falar neste tema.
Várias transformações sociais têm-nos permitido ganhos substanciais na longevidade nos últimos 50 anos. Embora em Portugal, nem os homens, nem as mulheres, tenham muitos anos de vida saudável depois dos 65 anos de idade, e até estejamos pior hoje do que em 1995, a esperança de vida aos 65 anos aumentou muito no mesmo período. Os ganhos em anos de vida nas sociedades ocidentais levaram também a um olhar diferente sobre o que é ser velho e sobre o que é o envelhecimento. Começámos a falar e a investigar sobre o envelhecimento activo. Percebemos que o envelhecimento quando combinado com actividades intelectuais e físicas estimulantes e adequadas permitia ganhar mais anos e mais anos saudáveis.
Contudo, nem todas as pessoas que envelhecem conseguem manter independência ou conseguem manter-se nas suas casas. Devido a vários factores é frequente muitas das pessoas com mais de 65 anos acabem por frequentar centros dia ou estarem em lares. E foi precisamente nos lares que a Covid se revelou mais letal. E, contrariamente à ideia que foi passada, as pessoas que morreram não íam na sua maioria morrer nos próximos 12 meses, as perdas de anos de vida foram substanciais, quer para homens, quer para mulheres.
Esta situação ocorreu em muitos países do mundo, o que demonstra o quanto estamos a falhar enquanto sociedades perante este grupo da nossa população. Os relatos dos profissionais de saúde sobre o que passou na Suécia são particularmente impressionantes. Em Portugal, já este ano, poucas semanas antes de sermos atacados pelo coronavírus, houve um debate no Parlamento sobre o suicídio assistido e a eutanásia que gerou grande comoção na sociedade portuguesa. A despenalização da morte assistida pretende dignificar a morte de quem considera que não pode continuar a ter uma vida digna. A muitas das pessoas que agora morreram nos lares, sozinhas, foi negada a dignidade e a companhia que se pretende esteja presente nas situações de morte assistida.
Não pretendo dizer, e muito menos insinuar, que isto se passou na maioria das instituições. Mas aconteceu em algumas. E naquelas que aconteceu, não devia ter acontecido.
É aceite que a limitação das visitas aos lares teve como objectivo principal proteger quem lá vive mas, ao mesmo tempo, também deixou essas pessoas sozinhas e tristes. E a solidão também mata. Pessoas em que a memória começa a falhar ou é ténue, não conseguem compreender o que sentem como abandono da família.
Não nos devemos esquecer que em Portugal operam lares ilegais. O que aconteceu a quem está institucionalizado nesses lares? Que mecanismos tem o Estado para proteger quem lá está? Não podemos continuar a assobiar para o lado porque o ‘problema está resolvido’.
Uma das lições que temos obrigação de retirar da pandemia é a necessidade de repensar o funcionamento dos lares. É necessário que o Estado – nós – considere que a sua responsabilidade para com os idosos não se esgota no pagamento das pensões. Quem está nos lares tem tanto direito como qualquer outra pessoa a um envelhecimento activo e a morrer com dignidade.
Céu Mateus, Presidente da APES,
Universidade de Lancastre