Clinicamente, a COVID-19 é uma doença que não afecta toda a população por igual. Os idosos e os doentes crónicos são exemplos de grupos entre os quais a COVID-19 se tem mostrado mais letal. Mas, para além deste aspecto clínico, a COVID-19 contribui de diversas formas para exacerbar desigualdades socioeconómicas já existentes.
Enquanto para muitos o teletrabalho passou a ser uma realidade, existem várias ocupações profissionais que não podem ser realizadas a partir de casa. Uma grande parte dessas ocupações é remunerada abaixo da média e baseada em contratos precários, mas revelou-se essencial nas últimas semanas. Veja-se, por exemplo, o caso dos empregados de limpeza dos hospitais, dos serviços de entregas, ou dos caixas de supermercado. A troco de magros salários, estes profissionais colocam-se em risco diariamente por todos aqueles que têm o luxo de poder ficar em casa. Estas diferenças na exposição à COVID-19 podem levar a um agravamento das desigualdades em saúde já existentes, principalmente se os grupos mais expostos forem aqueles cujo estado de saúde já era, à partida, pior. As desigualdades de tratamento, abordadas por Francisca Vargas Lopes numa recente contribuição para esta rúbrica, constituem uma preocupação acrescida nesta discussão.
No caso das crianças, muitas passaram a ter aulas virtuais ou telescola. Esta situação representa, para famílias de estratos socioeconómicos mais baixos, um desafio a vários níveis. Estas famílias terão maiores dificuldades em garantir acesso a um computador e à internet, ou a existência de um espaço sossegado em casa para a criança estudar e assistir às aulas. Pode-lhes ser também mais difícil encontrar disponibilidade para apoiar as crianças com matérias escolares. Tudo isto contribui para que, numa era pós-COVID-19, o fosso em termos de aproveitamento escolar já existente entre crianças de estratos sociais distintos se alargue, o que terá repercussões em termos de mobilidade social a longo-prazo.
Há também que ter em conta as desigualdades entre homens e mulheres dentro do agregado familiar. Para algumas mulheres, ficar em casa significa passar os dias na companhia de um parceiro abusivo. Para outras traduz-se em dificuldades adicionais em conciliar a vida profissional, com obrigações familiares relacionadas com crianças ou idosos, e com as responsabilidades domésticas, que ainda recaem maioritariamente sobre o sexo feminino. A COVID-19 pode significar a perda do (pouco) progresso que ocorreu nos últimos anos em termos da divisão de tarefas no lar e, de uma forma mais geral, do papel das mulheres na sociedade.
Esta lista não é, de todo, exaustiva. O leitor certamente não terá dificuldade em encontrar outros exemplos de como a COVID-19 é uma doença desigual, não afectando todos da mesma forma. Apesar de estarmos a praticar distanciamento social, devemos, mais do que nunca, estar atentos ao que se passa com quem nos rodeia. Em termos de agenda política, urge definir e implementar medidas que ajudem a reverter o agravamento das desigualdades socioeconómicas motivado pela COVID-19.
Ana Moura
Tilburg University